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fevereiro 1, 2012
Delírio tropical por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Delírio tropical
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 31 de janeiro de 2012.
Novo documentário resgata gravações de áudio e imagens perdidas do artista Hélio Oiticica
"Março de 1974. Augusto de Campos, aqui fala Hélio Oiticica, em Nova York, 1h45 da madrugada. Estou fazendo um 'tape', esse 'tape' eu queria dedicar a você, porque a maioria do 'tape' é Jimi Hendrix. Sempre que eu ouço Jimi Hendrix eu me lembro de você. A plateia dele era diferente, a relação das pessoas com o corpo mudou muito e a relação também dos espectadores com o performer. Ao mesmo tempo em que ele era aclamado, era repudiado."
Nos anos em que viveu em Nova York, de 1970 a 1978, Hélio Oiticica, um dos fundadores do movimento neoconcreto, gravou divagações como essas em fitas cassete que mandou para amigos no Brasil, como Augusto e Haroldo de Campos, o cineasta Júlio Bressane e os artistas Carlos Vergara e Antônio Dias.
São conversas em tom confessional, reflexões sobre arte, música e proposições estéticas. Agora elas servem como espécie de trilha sonora para "Delirium Ambulatorium", documentário sobre o artista, morto aos 42 em 1980, que seu sobrinho, César Oiticica Filho, tenta terminar.
"É um filme contado em primeira pessoa, por ele mesmo", conta Oiticica Filho, sobre seu filme ainda sem previsão de estreia. "São suas visões da sociedade, é como ele analisa as coisas."
Numa produtora em Ipanema, no Rio, o diretor mostrou à Folha cenas do primeiro corte do filme. E também um vasto acervo de imagens ressurgidas agora, depois de três anos de buscas intensas.
"Essa pesquisa vai além do filme, nunca vamos conseguir mostrar tudo isso", diz Oiticica Filho. "Estamos num ponto crítico do documentário, que é conseguir todas as autorizações de imagens."
ACHADOS E PERDIDOS
A voz de Oiticica em entrevistas, conversas com amigos e nas "Heliotapes", como Haroldo de Campos batizou as fitas gravadas, sublinha imagens raras -muitas delas estavam perdidas até hoje.
Suas reflexões sobre Jimi Hendrix, por exemplo, e a ideia de que o músico transformou música em experiência, "uma coisa antropofágica mesmo", nas palavras do artista, vão de encontro à sua descrição da exposição que realizou na galeria Whitechapel, de Londres, em 1969.
"Essa foi sua experiência mais forte", diz Oiticica Filho. "Isso é a maior coisa que a gente queria encontrar."
Antônio Venâncio, pesquisador de imagens do documentário, conta que tentou de todas as formas, sem êxito, ter acesso a um vídeo da rede britânica BBC, que na época fez uma reportagem sobre a mostra londrina.
"Fora do Brasil, as coisas também se perdem", conta Venâncio. "A Tate Modern tentou encontrar essas imagens e não conseguiu."
Mas chama atenção o que foi encontrado. Há imagens da intervenção "Devolver a Terra à Terra", de 1979, dele vestindo passistas da Mangueira com suas capas "Parangolé", e da performance coletiva "Apocalipopótese", que levou vários artistas ao aterro do Flamengo em 1969.
Essas últimas imagens não eram vistas desde os anos 90, quando os registros rumaram para uma mostra de Oiticica em Paris e nunca foram devolvidos pela curadoria.
Oiticica também aparece no primeiro registro filmado de que se tem notícia do
happening "Mitos Vadios", que o artista Ivald Granato fez na rua Augusta, em São Paulo, no fim dos anos 70. Nas imagens, ele surge de sunga e óculos de aviador na cabeça dançando e cantando.
Numa entrevista pouco antes de sua morte, em 1980, Oiticica fala sobre a origem e os desdobramentos de sua instalação "Tropicália", de 1967.
"Era uma espécie de ambiente", diz Oiticica, enquanto monta uma maquete de uma de suas obras. "Caetano Veloso gostou do nome e fez a música, daí nasceu o tropicalismo, que é uma posição estética sobre as coisas."
Na mesma conversa, ele sustenta que o tropicalismo vingou na música, mas ataca a forma como o movimento repercutiu nas artes visuais -uma "papagaiada do pop americano abrasileirado".
De certa forma, o novo filme dá maior lastro às declarações polêmicas do artista. Enquanto "HO", curta de Ivan Cardoso filmado em 1979, mostra o artista com sua obra, "Delirium Ambulatorium" casa as criações dele com sua fala, construindo uma espécie de diário visual.
Aquilo que sobrou do filme de Cardoso, aliás, é reaproveitado no filme de Oiticica Filho. "É a ideia de passar a experiência de como essa obra começa e por que ela vai tão longe", diz Oiticica Filho.
Houston conduz pesquisa sobre obra do artista
Num laboratório do departamento de restauro do Museu de Belas Artes de Houston estão latas de tinta encontradas no ateliê de Hélio Oiticica com anotações nos rótulos sobre seus processos de criação.
De certa forma, quase toda a obra de Oiticica já passou pelas mãos de Wynne Phelan, chefe de conservação do museu.
"Somos os nerds da arte", conta Phelan à Folha. "É preciso ser cientista e conhecer arte para acessar informações históricas presas em restos de tinta."
Quando Houston fez a primeira retrospectiva internacional do artista, há seis anos, Phelan foi escalada para restaurar as peças da exposição, como a "Série Branca", que depois pegaria fogo no incêndio que consumiu o espólio do artista no Rio em 2009.
Duas obras dele ainda estão em Houston, um "Metaesquema" e um "Relevo Espacial" comprados há cinco anos no pacote completo da coleção de Adolpho Leirner, um dos maiores acervos do concretismo brasileiro, pelo museu norte-americano.
Agora, Phelan e sua equipe estudam a fundo os materiais usados por Oiticica em seus quadros, na tentativa de reverter o impacto de intervenções equivocadas e saber como proceder caso reparos sejam necessários no futuro.
Usam radiografias e uma máquina capaz de identificar os elementos químicos na composição.
"Ele usava muito o vermelho, é por isso que há grandes quantidades de mercúrio em seus quadros", afirma Phelan. "Hélio construía tudo em camadas; mesmo as coisas mais simples são, na verdade, complexas."