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novembro 28, 2011
Exposição da americana Nan Goldin periga não acontecer, O Globo
Exposição da americana Nan Goldin periga não acontecer
Matéria originalmente publicada na seção de Cultura do jornal O Globo em 28 de novembro de 2011.
Prevista para janeiro, mostra com imagens polêmicas vira alvo de briga
Na época, Nan já enfrentava problemas para expor trabalhos e publicar livros, mas pregava que "a arte não pode e não deve ser regulada pelo Estado".
RIO - A fotógrafa americana Nan Goldin, que ganhou fama internacional por ter registrado com sua lente escrachada e invasiva o submundo das drogas e do sexo nova-iorquino nas décadas de 1970 e 1980, está no centro de um polêmica que chacoalhou o meio artístico brasileiro no último fim de semana.
Nan chegaria ao Rio de Janeiro no próximo dia 20 para fotografar a ceia de natal de um grupo de drag queens e travestis brasileiros, como parte de seu projeto internacional "The other side". Também daria os toques finais na exposição que ficaria aberta ao público no Oi Futuro Flamengo entre os dias 9 de janeiro e 4 de março. No escopo da mostra, que tomaria três andares da instituição, a série de fotos "Empty rooms", em que se veem ambientes vazios onde Nan viveu experiências dramáticas, e os slideshows "Balada da dependência sexual", considerada sua obra-prima com mais de 700 fotos explícitas de sexo e drogas, "Heart beat", que mostra situações amorosas em geral, e o citado "The other side", que já incluiria as imagens feitas no Rio.
Entre os registros que ficariam à mostra, fotos em que se veem crianças nuas, homens e mulheres se masturbando e fazendo uso de drogas — universo no qual Nan sempre circulou e que costuma defini-la.
Na última sexta-feira, no entanto, Ligia Canongia, curadora da mostra, foi chamada para uma reunião no Oi Futuro e saiu de lá certa de que a exposição havia sido cancelada. Horas depois, sentou-se diante do computador e disparou um desabafo para mais de cem artistas cariocas e paulistas. No texto, ela dizia:
"Em reunião ontem, no Oi Futuro, fui comunicada pelo curador e pela direção do instituto que a exposição de Nan Goldin estava suspensa. Em ato arbitrário, prepotente e desrespeitoso com a artista, com os curadores e, sobretudo, com a obra de arte, a mostra foi censurada (...) A direção e a curadoria dessa casa simplesmente não sabiam quem era Nan Goldin e o conteúdo de suas imagens (...) Um trabalho de quase dois anos foi jogado fora, sumariamente. Atos como este só se inscreveram na história durante o nazismo, o fascismo e as ditaduras."
Apoio de artistas
Em 24 horas, Ligia recebeu mais de 30 respostas em apoio.
O artista Carlito Carvalhosa disse: "O trabalho da Nan é bom e poderoso, há décadas ela expõe no mundo todo e tem seu trabalho publicado. Mostra coisas que se passam todos os dias, em todos os lugares. Difícil saber o que é pior para uma instituição cultural, programar uma exposição sem saber do que se trata ou censurá-la. Faltou grandeza, coragem e potência, que é o que se espera de quem quer fazer cultura."
O também artista José Damasceno disparou: "Considero essa censura algo grave e inaceitável, o rompimento do contrato nessa escala é o próprio aniquilamento da responsabilidade onde prevalece o arrivismo e o atraso e compromete todo o esforço atual de se pensar o Rio de Janeiro como cidade cosmopolita."
O crítico de arte Fernando Cocchiarale questionou: "O que é pior para uma instituição cultural respeitável? Correr riscos ou satisfazer os setores mais conservadores, ficando estigmatizada ante seu público frequente por um ato de censura?"
E Agnaldo Farias, um dos curadores da 29 Bienal de São Paulo, que expôs a íntegra da "Balada da dependência sexual", ironizou: "Essa atitude se contrapõe ao próprio nome da instituição. Talvez eles tenham que repensar isso, para Oi Passado ou Adeus Futuro."
Ligia conta sua versão:
— No final de outubro, o Oi Futuro me pediu para ver as obras da Nan. Mandei alguns dos mais de 700 slides como exemplo — diz. — Aí pediram que tirássemos da mostra as fotos de crianças nuas. A Nan concordou, dizendo que, há tempos, tinha vontade de reeditar "Heart beat" mesmo. Então o Oi Futuro pediu que tirássemos toda e qualquer imagem de criança, mesmo vestida. Nan aceitou, mas disse que, no lugar dessas imagens, colocaria uma tela preta com a palavra "censurado" por acreditar que aquilo seria "uma mutilação muito grande" à obra. E foi aí que, na sexta-feira, me comunicaram na reunião que não fariam mais a exposição.
Em nota, o Instituto Oi Futuro nega o cancelamento da mostra. Diz que "não houve uma definição" sobre a realização da exposição de Nan já que a "reunião que foi realizada para este fim, na última sexta-feira, não foi concluída" . (Eles alegam que Ligia teria abandonado a sala no meio da conversa.)
Preocupada com a repercussão que a polêmica suscita, a assessoria de imprensa do instituto informou que "adota como praxe a análise prévia dos trabalhos que fazem parte da programação de exposições de seus centros culturais" para "certificar-se de que o material tem correspondência com a missão do instituto, voltado para projetos educacionais e a difusão das novas tecnologias como ferramenta de aprendizado entre crianças e adolescentes". Informou ainda que o material só foi enviado por Ligia para essa análise há uma semana e que esse processo ainda está em trâmite.
Em 2008, Nan Goldin escreveu um artigo no jornal britânico "The Independent" intitulado "It’s ridiculous that we treat child nudity as a problem" ("É ridículo que nós tratemos a nudez infantil como um problema", em tradução livre do inglês). No texto ela defende que a perversidade está nos olhos de quem admira sua obra, que as crianças nascem sem a sombra da sexualidade e que ela lhes é imposta com o passar dos anos. "Crianças são seres sensuais. Eles tocam e gostam de ser tocados. É o adulto que, algumas vezes, se aproveita dessa situação."
No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), estabelecido pela lei 8.069 e em vigor desde 1990, tem por objetivo garantir a proteção integral dos menores de idade. A legislação foi citada recentemente na liminar que proibiu a exibição no Rio de Janeiro de "A Serbian film — Terror sem limites", acusado de incitar a pedofilia. O filme, previsto para estrear em agosto, nunca entrou em cartaz no Brasil.
É lamentável como os critérios e críticas são tratados no Brasil... aqui é o país do "TUDO PODE"! Chega disso! Uma instituição tem o direito de dizer não a um artista... liberdade artística também inclui o não! Tantos casos de pedofilia, um assunto extremamente sério, tratado de maneira arbitrária em nome da ARTE! Crítica faz parte do trabalho, e o artista deve tratar isso como parte do caminho que trilha, e não como censura. A instituição não deve "engolir" tudo o que se apresenta só porque o artista tem "nome" no mercado. Apóio a coragem do Instituto Oi Futuro.
Posted by: Raquel at dezembro 2, 2011 9:27 AMCara Raquel,
Imagens de crianças em ambiente intimo com seus responsáveis representados de modo cultivado e contemporâneo não tem relação alguma com pedofilia a priori.
A instituição tem todo direito de optar por expor ou não uma coisa, no entanto está voltando atrás de seu aceite: demorou um ano para perceber que aquilo que aprovou não lhe convinha. Isso já demonstra o descaso com as obras que expõe e seu caráter acrítico. Trata-se assim do oposto do que você indica. Vale dizer que nada se fala sobre as obras, apenas sobre seu tema; elas são bem mais do que isso. Nesse ponto de vista, obras como as de Michelangelo e Caravaggio já sofreram reprimendas igualmente equivocadas. É caso de covardia e não coragem, que por sinal saiu pela culatra.
A artista não tem 'nome' no mercado, ela não é um cigarro: sua obra tem sido vista e criticada ao longo dos anos, em diversos países, instituições e meios.
Por fim, devo alertar: você dá o direito de alguém decidir o que pode ou não ver? Por que a preocupação da Oi era toda essa: decidir o que você pode ou ñao ver. O nome disso é censura.
Caríssimo Cezar,
Concordo, foi realmente uma decisão retardatária do Instituto Oi Futuro. O conteúdo devia ter sido avaliado antes do aceite. Imagino o transtorno causado à produção da mostra. No entanto, não concordo como vêm sendo colocadas as questões a respeito deste caso. O artista, por mais que alguns acreditem, não é um deus soberano, está sujeito à críticas, é uma pessoa politicamente exposta.
Sinceramente não vejo a necessidade de se exporem fotos de crianças nuas, mesmo que artisticamente, em um momento onde a pedofilia é um dos mais sérios problemas do nosso país. Nem todas as pessoas que olharem para os trabalhos da artista terão todo esse "dom divino" da apreciação artística para se absterem de pensamentos nocivos. Crianças são seres muito frágeis, e devem ser preservados acima de qualquer teoria. E mais: não há comparação alguma com as reprimendas sobre as obras de Caravaggio e Michelangelo e o que está sendo colocado neste caso. Nenhuma mesmo!
Não acho que isso seja censura. Dou outro nome: liberdade, tanto para decidir no que invisto, no que vejo, no que exponho. Liberdade não é aceitar tudo, mas é ser livre para não aceitar também.
Posted by: Raquel at dezembro 6, 2011 11:12 AM