|
outubro 13, 2011
Antifotografia por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Antifotografia
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 13 de outubro de 2011.
Artistas embaralham noções de realidade e ficção e questionam ideia de autoria ao roubar, destruir e manipular imagens
Na fotografia do século 21, não existe mais o instante decisivo. Está aposentada a noção clássica de autoria, e a realidade mergulha na ficção.
Expoentes dessa antifotografia misturam imagens alheias, manipulam registros documentais, resgatam arquivos esquecidos e defendem a destruição da foto.
Na série que mostra agora no MoMA, em Nova York, Doug Rickard registra a "ruína do sonho americano" pelas lentes do Google. Ele se apropria de imagens de cidades devastadas pela crise econômica como autores da Grande Depressão retrataram a miséria, num "híbrido de tradição e apropriação".
"Queria uma nova forma de olhar para a América", diz Rickard. "Essa é uma dinâmica estranha, porque mesmo com imagens prontas tenho a liberdade de percorrer esses cenários com meu olhar."
Penelope Umbrico, fotógrafa que esteve no último Paraty em Foco, rouba imagens do Flickr em que casais se retratam diante do pôr do sol, mostrando que são quase iguais mesmo quando há uma intenção autoral. "Essa cultura de remixar imagens é hoje como respirar", diz Umbrico. "A responsabilidade de um artista é entender essa estrutura e saber operar e trabalhar com ela."
Noutro remix, o coletivo Cia de Foto refotografou e reenquadrou imagens de anônimos encontradas num arquivo do Bom Retiro e criou uma narrativa sobre o bairro.
"Tem a fotografia independente do fotógrafo", diz Rafael Jacinto, da Cia de Foto. "O clique é minimizado, deixou de ser o ponto importante e o processo que vem depois é maior do que o instante em que a foto se baseia." Resumindo, fotografia é ficção. Esse mesmo coletivo transformou imagens de um trio elétrico no Carnaval de Salvador em espécie de procissão fantasmagórica e fotografou São Paulo sob o impacto de uma guerra fictícia.
Reinventando a memória, Ivan Grilo garimpou arquivos de sua família e misturou casais em montagens fotográficas na instalação que expõe agora no Paço das Artes.
"É muito mais sobre apagamento do que sobre imagem", diz Grilo. "Essas imagens estão na iminência do apagamento da memória." Em linha semelhante, Pedro Victor Brandão cria espetáculos de destruição ao expor imagens de um arquivo à luz ultravioleta, que corrói o negativo, questionando a noção de permanência da foto.
E realidade também vira abstração em imagens de Tchernobil e do polo Norte. Alice Miceli, que esteve na última Bienal de São Paulo, criou uma série de composições cinzentas ao expor negativos à radiação da cidade ucraniana onde aconteceu o grande desastre nuclear.
"É fazer a radiação documentar isso", diz Miceli. "É uma memória traumática." São resquícios e farpas de uma tragédia que orientam as imagens de Miceli. Elas se tornam quase um aceno ao minimalismo, de pretos e brancos numa série neutra.
Na mesma estratégia metonímica, da parte pelo todo, Letícia Ramos viaja agora pelo polo Norte em busca de tons de azul e branco. Ela inventou uma câmera capaz de registrar só essas cores, como se resumisse um território a uma lembrança cromática. "Queria uma imagem pura, como se construísse um experimento no laboratório", diz Ramos. "Estou investigando uma região, e essa câmera surge como parte de uma poética exploratória."
Veja obras dos antifotógrafos
folha.com/no989552