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setembro 21, 2011
Por um equilíbrio de forças por Luisa Duarte, O Globo
Por um equilíbrio de forças
Matéria de Luisa Duarte originalmente publicada no Segundo Caderno do jornal O Globo em 19 de setembro de 2011 e replicado no blog Cubo Branco.
Em meio ao frenesi da ArtRio, é hora de pensar na fragilidade dos outros pontos do circuito
O desejo não é fazer o papel de quem vem estragar a festa munida de algum tipo de frustração ou recalque. Nem de longe são estes os afetos que mobilizam esse texto. Mas sim uma necessidade de se instaurar um debate em meio ao alarido causado pelo sucesso da feira ArtRio, ocorrida na semana passada. Um êxito de vendas e de público – segundo a organização foram negociados em vendas de obras cerca de R$120 milhões e mais de 30 mil pessoas estiveram nos armazéns ao longo dos cinco dias de evento.
Antes de mais nada, faço coro aos que elogiam a feira, estive lá e, de fato, parecia muito bem produzida e organizada, bem como acho fundamental que o Rio de Janeiro volte a ter um papel relevante no circuito da arte do país depois de anos e anos eclipsado.
Uma feira é um dos vetores de um circuito de arte. O valor cultural e econômico de um trabalho de arte é estabelecido por uma espécie de rede que inclui diversos agentes – galerias, colecionadores, curadores, recepção do público, museus, instituições, jornalistas, críticos. O mercado tem um lugar nessa rede que valida artistas e suas obras, mas em um circuito desequilibrado como o nosso o lugar ocupado pelo mercado está, hoje, grande demais. E o problema não está no mercado, este faz cada vez melhor o seu papel. O problema está em outros pontos do circuito. Em um cenário no qual museus e instituições são extremamente frágeis, no qual acervos e coleções públicas são escassas, no qual o espaço para a crítica de arte é cada vez menor, em um cenário como este é preciso parar e pensar quando se testemunha um frenesi como o que se viu durante e após o sucesso da ArtRio.
Artistas se referindo ao evento como um “momento mágico”... Menos, menos. Seu sucesso é inquestionável e sua existência bem vinda. Mas será que a mesma elite econômica da cidade e do país que foi até a feira gastar o seu dinheiro tem olhos abertos para as instituições da sua cidade e do seu país – como vai o MAM, como vai o MASP? Vejam bem, acho que feira é feira, espaço não de reflexão e educação, mas de venda e compra de arte - mesmo que espaços curados como os Solo Projects promovam um respiro “reflexivo”. Assim, não reclamo para a feira um papel que não é o dela, mas reclamo da sociedade, de nós mesmos, dos agentes do circuito e do poder público – forte aliado da ArtRio – um olhar mais atento para as fragilidades do circuito como um todo.
No circuito do país, tanto o espaço para o exercício da crítica é escasso, quanto a formação de acervos públicos é frágil. A crítica é um lugar no qual elementos como aposta e dúvida têm vez. A presença da crítica é fundamental na constituição de um espaço público da arte. Na crítica existe a chance de se rever o consenso e contribuir para uma história da arte que nem sempre coincide com aquela desenhada pelo mercado. Já as coleções públicas de museus e instituições são os lugares por excelência para se contar uma história da arte e, consequentemente, os lugares para uma educação do olhar. Sem falar que espaços de ponta como um MoMa (Nova York) e uma Tate Modern (Londres) são hoje verdadeiros chamarizes turísticos de suas cidades. Só que, nestes casos, existe a inteligência de se aliar o turismo que rende dinheiro, com um papel consciente de elites econômicas que contribuem para a existência daquelas coleções públicas. No Brasil as elites econômicas ainda não têm essa consciência. É exemplar o caso do MASP. Na última década o museu chegou a ter a luz cortada por falta de pagamento quando era então presidido por Julio Neves, por sua vez arquiteto do edifício que abrigava a Daslu, o então maior complexo de vendas de roupas de luxo do país. Proximidade com os donos do dinheiro nunca faltou ao MASP. Mas se pergunte se alguém, algum dia, hesitou em gastar R$ 10.000 em uma roupa ou, no lugar disso, contribuir minimamente para o acervo do MASP ou a manutenção do maior museu da sua cidade e empreender assim um papel de cidadão que intervém no destino público da arte realizada no país em que vive e no qual crescerão os seus filhos?
A maior coleção de arte construtiva do Brasil, de Adolpho Leirner, foi oferecida mais de uma vez para instituições brasileiras. Nenhuma delas se interessou ou encontrou condições para viabilizar a compra. Resultado, a coleção encontra-se hoje em uma instituição norte-americana. O mesmo ocorreu com parte da obra de Helio Oiticica. Esses fatos relatam a nossa própria incapacidade de preservar e exibir tesouros da nossa cultura. Estes seriam passos fundamentais para a formação de um país, de uma cultura, e da gente que aqui vive.
Em um circuito de arte cujas forças são tão desequilibradas como é o caso do Brasil é preciso, em meio ao frenesi causado pelo evento ArtRio, recordar a nossa precariedade de fundo. A arte tem, em si mesma, uma capacidade de crítica, de ruído, de atrito com o mundo – “I shop therefore I am”, trabalho de Barbara Kruger que ilustra esse texto fala criticamente sobre a arte como mercadoria mimetizando a lógica da publicidade. Não edulcorar a relação entre arte e mundo, não domesticar a arte, é também o que pode ocorrer quando temos um circuito mais equilibrado. Ou seja, temos em mãos o desafio de instaurar um contexto no qual o descompasso entre os diversos vetores que constituem o circuito da arte seja menor. Para isso é preciso ter olhos abertos para perceber a importância de uma feira de arte, bem como também notar a fragilidade do contexto no qual ela está inserida.
Prezada Luisa, muito bem colocado ! gostei dos seus comentários e assino em baixo. Não temos política pública cultural e nem é prioridade por aqui. Os espaços públicos culturais, com raras exceções estão sem manutençao , sem espaços adequados para sua preservaçao.... e poderíamos ficar falando horas sobre o que falta nestes espaços. Enfim, prabéns pelo artigo.
abraço
Graça Seligman
fotógrafa
Cara Luisa,
Muito oportuno seu artigo. Concordo plenamente com a falta de consciência da nossa sociedade e poder publico em valorizar e preservar nossos acervos e coleções públicas que constituem a história da nossa cultura. Entre outros pontos que coloca em seu artigo.
Luciana
Bem pontuado, e me chamou a atenção o início. Porque justificar a crítica com uma escusa, como se fosse necessário explicitar que não é a dor de cotovelo que move a crítica? Não fosse nosso circuito provinciano, de herança autoritária, que interpreta qq crítica pelo viés "psi", não seria necessário.
A crítica, quanto mais independente melhor...
É necessário refletir sobre exatamente o que o texto aponta, mas não aprofunda: os pontos frágeis.
Uma política pública municipal pífia produziu o absurdo do apagamento da obra do Richard Serra no CAHO, Rio, e quase ninguém se manifestou...
Uma feira internacional organizada a partir de uma lógica bancária gera uma euforia excessiva - o sucesso foi local, vide a insatisfação das galerias de fora.
Uma tendência a "valorizar" o que dá certo e ignorar os problemas do circuito, contribui para a reprodução do mesmo, sempre o mesmo, e o mesmo é ditado pelo mercado.
Há muito ainda a aprofundar no viés crítico desta reflexão (sem medo de parecer "do contra" ou "recalcado" pq sempre haverá as interpretações que vão tentar reduzir a crítica a "um problema pessoal" daquele que critica), mas esse texto já é algo de bom!