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setembro 19, 2011
Arqueologia de imagens por Suzana Velasco, O Globo
Arqueologia de imagens
Matéria de Suzana Velasco originalmente publicada no caderno Cultura do jornal O Globo em 19 de setembro de 2011.
Libanês Akram Zaatari, que recolhe a História nos arquivos pessoais, apresenta cinco trabalhos na Bienal de Istambul
ISTAMBUL - Quando o libanês Akram Zaatari começou a filmar em Beirute, no início da década de 1990, a cidade vivia um momento de efervescência cultural, uma esperança com o fim da Guerra do Líbano que se refletiu na criação e misturou as artes na capital. O artista formado em arquitetura que fizera seu mestrado em estudos de mídia em Nova York, porque nos anos 1980 não havia escolas de cinema no país, não precisava mais sair de Beirute. Zaatari trabalhou na TV, fez curtas-metragens, muitos filmes documentais e, quando se deu conta, carregava a classificação de artista. Com seu interesse pelo documental, aproximou-se da fotografia, mas nunca abandonou o audiovisual, como no recente vídeo "Amanhã tudo ficará bem", um dos destaques da 12a Bienal de Istambul, que foi aberta anteontem para o público com curadoria do brasileiro Adriano Pedrosa e do costarriquenho Jens Hoffmann.
Com uma linguagem que se separa de suas obras mais documentais, ele é um dos cinco trabalhos de Zaatari na bienal, e será apresentado na 17a edição do festival VideoBrasil - do qual o artista já participou cinco vezes -, que começará no dia 30 deste mês, em São Paulo.
- Gosto do trabalho de campo, de conversar com as pessoas, fazer muitas perguntas, perguntas que geralmente ninguém faz - diz Zaatari, entre goles de chá turco, num café em frente à bienal. - Levo minha prática documental ao meu trabalho artista. Não estou interessado em construir ficções, mas em sustentar imagens na realidade. Meu trabalho é como o de um arqueólogo, de escavar informação.
A arqueologia de Zaatari se evidencia em quase todas as obras expostas na Bienal de Istambul. "Sem título (O livro de cartas de família e amigos de Nabih Awada)" surgiu de uma dessas conversas de prospecção, com um prisioneiro político comunista libanês em Israel que montou um livro com as cartas recebidas na prisão, onde ficou entre 1988 e 1998, dos 16 aos 26 anos. A obra, que consiste em imagens do livro, revela uma das marcas do artista, de recolher a História nos arquivos pessoais - uma marca forte também desta Bienal de Istambul.
Zaatari conheceu a família de Nabih Awada quando fez um filme sobre prisioneiros políticos em Israel, para o qual coletou cartas dos presos. No fim dos anos 1990, as filmagens, que dominavam seu trabalho, começaram a dividir espaço com essa "fotografia arqueológica". Em 1997, o artista foi um dos criadores da Arab Image Foundation (Fundação Árabe da Imagem), uma organização sem fins lucrativos destinada a pesquisar e preservar a fotografia do Oriente Médio, do Norte da África e de comunidades árabes pelo mundo. Ele foi atrás de álbuns de família, revirando fotos e mais fotos e buscando entender como e em que contexto elas foram tiradas. E assim esse método invadiu seu trabalho, uma arqueologia de imagens refletida em imagens.
Depois de escavar arquivos de fotos e colecioná-las, Zaatari se torna um editor, e então reconhece que constrói ficções, e não apenas revela informações neutras ao espectador. Na série de fotos que domina a sala dedicada ao artista na bienal, casais posam para a câmera do estúdio fotográfico Shehrazade, que existiu por mais de 50 anos em Saida, cidade libanesa onde o Zaatari nasceu. Desde 1999, ele se debruça sobre os negativos do estúdio, de cerca de um milhão de imagens, a maioria feitas pelo dono do local, Hashem el Madani. Grande parte dos parceiros de "Práticas de estúdio - Casais" é formada por pessoas do mesmo sexo, que ora posam lado a lado, ora beijam-se na boca ou brincam de marido e mulher com véus de noiva.
- Queria entender o papel de um estúdio fotográfico numa cidade conservadora como Saida. As imagens que selecionei mostram como as pessoas usam aquele espaço como um teatro, onde podem atuar. Não há como não interpretar esses registros com os olhos de hoje. Mas não podemos saber se são casais ou estão apenas brincando - diz o artista, cuja sala individual na bienal faz parte do núcleo sobre identidade e sexualidade, temas recorrentes em sua obra.
Pistas são dadas por observações de Madani que Zaatari exibe ao lado das imagens. O dono do estúdio diz que de todos os casais se beijando que fotografou apenas um era heterossexual - e, mesmo assim, o homem roubou o beijo na hora do clique. A partir das imagens do Shehrazade, o artista criou ainda o vídeo "Mãos em repouso", acentuando a posição da mão dos fotografados. Outra série do projeto "Práticas de estúdio", montada por Zaatari com fotos de Madani e exibida na bienal, mostra homens e mulheres que pagaram ao estúdio para ter fotos suas carregando armas.
Em meio a essas obras de pesquisa, surgem as ficções intencionais, como o poético vídeo "Amanhã tudo ficará bem", um diálogo entre dois amantes que se separaram há dez anos e conversam de longe em tempo real, como num chat de internet, mas com a escrita - e o tempo lento - da máquina de escrever. Há uma expectativa de reencontro, simbolizada por cenas do pôr do sol de 30 e 31 de dezembro de 1999 - imagens entre os muitos crepúsculos que Zaatari já filmou e guardou. O vídeo é dedicado ao cineasta Eric Rohmer, em cujo filme "O raio verde" uma mulher observa o pôr do sol, esperando o raio verde, que representa a esperança daqueles que o conseguem ver. Para o artista, a obra fala da esperança de encontro, a mesma que leva em suas perguntas a cada trabalho de campo.
- A minha geração encontrou muitas formas de produzir. Éramos teimosos, tínhamos a expectativa de mudanças com o fim da guerra - diz Zaatari. - Hoje a arte no Líbano é uma elite, mas é o espaço em que as pessoas podem dizer o que quiserem. Não tenho esperança na política, acredito que a arte hoje seja o único modo de se pensar os hábitos sociais, as possibilidades políticas, a História.