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agosto 31, 2011
Decantar o rio por Paula Alzugaray, Istoé
Decantar o rio
Matéria de Paula Alzugaray originalmente publicada no caderno Artes Visuais da revista Istoé em 26 de agosto de 2011.
Em obra sonora realizada com águas das três principais bacias do País, Cildo Meireles encanta e lança um alerta
OCUPAÇÃO CILDO MEIRELES – RIO OIR/ Itaú Cultural, SP/ até 2/10
Deixar os trabalhos decantarem por muito tempo, na forma de ideia e anotações, antes de torná-los realidade. Esse é um procedimento comum na trajetória de Cildo Meireles. Nos anos – ou décadas – em que se dedica à decantação dos projetos, o artista garante a filtragem de suas impurezas, assemelhando seus processos criativos aos químicos. Esse ato de decantação marcou também a criação da instalação sonora “rio oir”, que teve sua primeira anotação em 1976 e agora ganha forma graças ao projeto Ocupação, do Itaú Cultural. Foram dois anos de viagens e gravações dos sons das águas das três principais bacias do País: Tocantins, Paraná e rio São Francisco. O resultado é uma obra sonora de primeira grandeza, em que Cildo tece seu elogio à natureza desenvolvendo todos os sentidos da palavra decantar: celebrar em cantos ou poemas.
O trabalho parte de um palíndromo, uma frase reversível e reveladora. O espelhamento de “oir” – ouvir em castelhano – com “rio” sugere que paremos para escutar o que as águas têm a dizer. E, ao prestar atenção aos fluxos dos rios, o artista e sua equipe descobriram em suas viagens um sistema de nascentes em estado de alarme, muitas delas natimortas. A fim de demarcar essa percepção, a obra sonora orquestra os sons grandiosos das fontes naturais – do estrondo das pororocas à arrebentação das marés – com os sons das águas encanadas dos sistemas residuais das cidades. “rio oir” é uma obra sonora em forma de LP de vinil. A sinfonia das águas ocupa o lado A. O lado B é formado pelo som de risada humana. Afinal, esse é o segundo sentido da palavra “rio”: rir na primeira pessoa do singular. Há uma série de duplos sentidos, espelhados e sobrepostos, nos dois lados desse palíndromo.
O trabalho funciona muito bem como vinil. O único ruído da nova obra sonora de Cildo Meireles é o caráter cenográfico de sua montagem no espaço, criada, em realidade, pelo curador da mostra, o arquiteto Guilherme Wisnik. Incomoda o aspecto provisório das salas concebidas para a escuta dos rios e das risadas e é desnecessário o circuito de imagens do making of das gravações, que circunda a instalação. Contudo, se a arte pudesse mudar o mundo, “rio oir” contribuiria para decantar nossas contaminações.