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agosto 23, 2011
Cildo Meireles opõe rios e gargalhadas por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Cildo Meireles opõe rios e gargalhadas
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no caderno Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 20 de agosto de 2011.
Artista grava um disco em que compila sons de cursos d'água de um lado e uma composição de risos do outro
Duas salas, uma toda metálica e outra escura, servem de ambiente para a execução do som agora no Itaú Cultural
Quando chegou a Formosa, perto de Brasília, Cildo Meireles decidiu inverter todo o curso de seu projeto. Era para usar o som dos rios, numa gravação que ia de suas nascentes quase inaudíveis até a explosão da pororoca.
Mas lá o artista viu que o fio d'água que vira depois o São Francisco foi aterrado na construção de um bingo.
"É a morte que acaba dentro do poço", conta Meireles à Folha. Sua composição então começa no barulho ensurdecedor da pororoca e acaba em pingos no poço, que ele chama de "estertores do rio".
Na mostra que abre agora no Itaú Cultural, Meireles dá corpo a uma ideia de mais de 30 anos. Ele escreveu num caderno o palíndromo "rio oir", mistura de curso d'água e o verbo "rir" conjugado na primeira pessoa com a palavra espanhola para "ouvir".
Num LP, ele decidiu gravar de um lado o som dos maiores rios brasileiros, Amazonas, São Francisco e Paraná. Do outro, orquestrou uma composição de gargalhadas.
"Acabou virando um contraponto dessa tragédia que é a morte dos rios", diz Meireles. "Fica entre essa coisa solene, grande dos rios e a distensão que os risos têm."
Também contrapõe a placidez de um lugar como Águas Emendadas, estação ecológica nos arredores da capital federal onde nascem as maiores bacias hidrográficas do país, e a fúria dos rios desaguando no Atlântico.
Mas Meireles quer ilustrar esse contraste só com o som. Se dependesse dele, não haveria toda a estrutura montada no espaço como acessório de sua aventura sonora.
São duas salas encalacradas, uma abraçando a outra em contraste absoluto. Um lado do disco toca num ambiente metálico, como se evocasse o espelho d'água do rio, enquanto o outro toca numa escuridão que forra o riso.
"Todos querem sempre privilegiar a vista, a civilização ocidental é muito imagética", diz ele. "Mas minha intenção era ter esse arquivo sonoro."
No fim, Meireles esconde a paisagem para escutar seu estrondo no mar ou a morte calada no subsolo de um bingo.