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agosto 11, 2011
Delírio tropical por Ana Cecília Soares, Diário do Nordeste
Delírio tropical
Matéria de Ana Cecília Soares originalmente publicada no Caderno 3 do jornal Diário do Nordeste em 11 de agosto de 2011.
Segundo filme da série Iconoclássicos, produzida pelo Itaú Cultural, estreia amanhã. Dirigido pelo artista visual Cao Guimarães, "Ex Isto" é inspirado em "Catatau", romance experimental do poeta Paulo Leminski
Em "Catatau" (1975), romance emblemático de Paulo Leminski, o experimentalismo da linguagem é a forma adotada pelas ideias, que se entrecruzam e perpassam cada página devorada pelo leitor. Sem meias palavras, com todos os pingos nos "is", o poeta curitibano não vacila em dizer, ao longo da narrativa, que "esta história não é estável, não é bem assim. É um pouco diferente, talvez seja outra coisa: quem sabe uma outra natureza trabalhou nisso, com manhas e ares outras, e na continuação, seguramente nada tem que ver com o que já vimos, e no fundo é a mesma coisa, mas não confundam". Na contramão do pensamento cartesiano e da narrativa linear, "Catatau" é uma das obras mais consistentes e elogiadas de Paulo Leminski. Nela, o autor se deixa levar por uma hipótese histórica: "E se o filósofo René Descartes tivesse vindo ao Brasil com a corte do holandês Maurício de Nassau?".
Num entrelaçamento entre a desconstrução da narrativa tradicional e a implosão da filosofia cartesiana, o livro apresenta-nos um Descartes confuso, com uma luneta na mão e um cachimbo cheio de ervas alucinógenas na outra. O filósofo pensa ter ficado louco no país tropical e o texto mostra sua alucinação. Descartes espera por Artaxerxes, seu amigo. Ele acredita que este, ao chegar ao Brasil, explicará toda a confusão que volteia sua mente. A "viagem" do francês se corporifica num experimentalismo verbal que segue a tradição de grandes obras como "Finnegans Wake", de James Joyce, e "Galáxias," de Haroldo de Campos.
Filme
Inspirado no romance de Leminski, o filme "Ex Isto" é um exercício puro da liberdade de criar. Na visão do diretor, Cao Guimarães, Descartes chega em terras brasileiras para deparar-se com a natureza atemporal do rio Araguari, no Amapá, e com as ruas e feiras coloridas do Recife contemporâneo. O filósofo avança neste mundo completamente estranho a si, onde seu pensamento racionalista não consegue explicar as experiências vividas por ele. Cao constrói uma narrativa tão experimental quanto a criada por Leminski. Algo que inquieta o espectador.
Cansativo no início, o filme melhorando do meio para o fim. Traz cenas hilárias do ator João Miguel na pele de um Descartes atordoado pelas ruas do Centro de Recife. Mais uma vez o ator dá provas de seu talento e de sua capacidade de se metamorfosear em qualquer que seja a personagem que encarne.
"Conhecia muito pouco da obra de Leminski. Então, li sua biografia e alguns de seus poemas, até chegar em ´Catatau´. Leminski desconstrói o tempo todo, mostra que o método cartesiano se derrete nos trópicos. Acredito que o filme é bastante fiel ao livro. ´Ex Isto´ foi uma experiência incrível. O que mais me marcou foi a fluidez e a liberdade de criar, parecido com o que eu fazia no teatro. Além disso, foi muito interessante esse encontro com o meu amigo Cao, um artista híbrido e muito talentoso", elogia o ator.
Processo
Antes de começar as gravações, Cao Guimarães reuniu a equipe de seis pessoas para um mergulho na obra completa do poeta curitibano, fazendo do trabalho de concepção do filme um processo colaborativo. Para ele, ainda que todo o texto presente no filme seja retirado do livro, exceto alguns trechos saídos de "O Discurso do Método", de Descartes, muitas cenas surgiram diante da liberdade criativa que permite trabalhar com um romance inovador marcado pela experimentação na linguagem.
O diretor utilizou de informações sobre a vida do filósofo e de cenários da atualidade, fazendo do filme uma narrativa fantástica em que as estruturas de tempo se dissolvem junto ao delírio tropical do pensador francês.
O filme é uma homenagem a Paulo Leminski e ao romance, uma de suas obras favoritas, à qual ele dedicou por dez anos de trabalho. "Ele foi, sem dúvida, uma das grandes referências da minha geração e, hoje em dia, é muito difícil encontrar edições de muitos de seus livros. Espero que o filme ajude de alguma forma a trazer novas edições da obra dele para o público", explica o cineasta.
"Ex Isto" tem estreia prevista para o dia 12 de agosto. Ficará em cartaz durante um mês no Espaço Unibanco Dragão do Mar e todas as sessões serão gratuitas. O filme é o segundo da série Iconoclássicos (o primeiro foi "Daquele instante em diante", sobre a vida e a obra do músico Itamar Assumpção), produzida pelo Itaú Cultural.
Os próximos filmes da série são: "Assim é, se lhe parece" (em setembro), em que o artista plástico Nelson Leirner tem sua poética filmada por Carla Gallo. Em novembro é a vez de uma homenagem a José Celso Martinez. Em dezembro, ao cineasta Rogério Sganzerla, por Joel Pizzini.
FIQUE POR DENTRO
O polaco
Filho de pai polonês e mãe brasileira, Paulo Leminski Filho (1944 - 1989) nasceu em Curitiba e passou toda a sua vida na cidade. Notabilizou-se como poeta, mas chegou a escrever contos, novelas, ensaios e um único romance, o experimental "Catatau". Em 1964, publica seus primeiros poemas na revista "Invenção", editada pelos concretistas Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. A poesia do grupo foi uma referência para toda a vida, assim como a tradição poética japonesa do haicai, com seus versos breves e precisos. Uma das principais atividades exercidas por Leminski foi a de tradutor, vertendo para o português obras de James Joyce, Samuel Beckett, Yukio Mishima, dentre outros. Realizou também parcerias musicais com Caetano Veloso e Itamar Assumpção. Em 1968, casa-se com a poeta Alice Ruiz, com quem viveu durante 20 anos, e teve três filhos: Miguel Ângelo (morto aos dez anos de idade), Áurea e Estrela. Boêmio inveterado, o poeta faleceu em 7 de junho de 1989, vítima de cirrose hepática.