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julho 21, 2011
Richter na fronteira do real por Antonio Gonçalves Filho, O Estado de S.Paulo
Richter na fronteira do real
Matéria de Antonio Gonçalves Filho originalmente publicada no caderno Cultura de O Estado de S. Paulo em 21 de julho de 2011.
Mostra do maior nome da pintura alemã será aberta na Pinacoteca do Estado no sábado
O pintor alemão Gerhard Richter nunca veio ao Brasil, mas, antes de completar 80 anos, no próximo ano, manda lembranças na forma de 27 obras reunidas em Sinopse, sua primeira individual brasileira em mais de meio século de carreira, realização do Ifa (Instituto de Relações Culturais com o Exterior) em parceria com o Goethe-Institut. Sentado na sala que abriga os trabalhos, na Pinacoteca do Estado, onde a mostra será inaugurada no sábado, seu biógrafo, Dietmar Elger, também diretor do arquivo que leva o nome do artista, em Dresden, garante que Richter selecionou cada um dos trabalhos exibidos, auxiliado na tarefa pelo historiador Götz Adriani. Nada mais apropriado para um artista organizado, sistemático e com rigoroso controle sobre sua produção, a ponto de anotar quantos metros de tela pinta por ano. Justificável: uma pintura sua pode custar até US$ 9 milhões.
Nem sempre foi assim. Richter amargou um período cinzento na Alemanha Oriental até escapar definitivamente do realismo socialista em 1961, ano em que estava sendo construído o Muro de Berlim. O pintor fugiu com a primeira mulher para Düsseldorf, na Alemanha Ocidental, onde estudou pintura com Karl Otto Götz, integrante do grupo Cobra, que contribuiu para o advento da arte informal nos anos 1950. Richter tem muito de seu mestre, que também oscilou entre a figuração e a abstração, tanto em monotipias com em fotos experimentais. Götz também foi professor de Sigmar Polke, companheiro de Richter na criação da paródica escola do "realismo capitalista", em 1965, resposta irônica à ditadura estética da Alemanha comunista e ao mercantilismo da arte pop americana.
Há, na retrospectiva da Pinacoteca, pelo menos uma obra dessa época, marcada pela amizade com os pintores Konrad Fische-Lueg e Georg Baselitz. Ela ilustra o método de apropriação de imagens fotográficas por esses "realistas capitalistas". Trata-se de Tio Rudi, que retrata o irmão da mãe do pintor, vestido como oficial nazista. Richter era adolescente durante a Segunda Guerra. Tragédias familiares - como a do tio, que morreu na França durante a Ocupação, e de uma tia doente mental, enviada para um campo de extermínio - fizeram de Richter um artista avesso a ideologias, segundo seu biógrafo. "Até mesmo a série de trabalhos sobre o grupo radical Baader Meinhof, feita em 1988, revela mais o medo de que sua filha Betty seguisse o caminho da terrorista Ulriche Meinhof, morta na prisão, em outubro de 1977, do que um comentário político sobre os atos da facção esquerdista", diz Elger.
Betty, hoje com 45 anos, é a filha mais velha de Richter, três vezes casado e pai de duas garotas e dois rapazes, todos retratados por ele. O caçula Moritz ficou por último e, quando lhe perguntam a razão, Richter simplesmente responde: "É que ainda não fiz nenhuma foto dele". Parece brincadeira, mas não é. O pintor vê o mundo por intermédio da imagem fotográfica. Desde que fez sua primeira exposição, em 1963, na Mobelhaus Berges, uma loja de móveis de Düsseldorf, Richter usa a fotografia como documento mais confiável que o olho, incapaz de perceber o que uma máquina registra com precisão. Se ele pinta depois de fotografar, é só pelo impulso subversivo de contestar a hierarquia da arte, como nos tempos do "realismo capitalista".
"Ele não está interessado em verossimilhança nem na pureza da arte, mas numa reinterpretação da realidade via fotografia, no entendimento do mundo por meio dela", observa seu biógrafo. De fato, por que alguém passaria a vida replicando fotografias em pinturas tão "realistas" que chegam a colocar o espectador em dúvida sobre o que vê? Não para criar ilusionismo, isso é certo. Richter escapa até mesmo da prisão temática que prende outros pintores. Há 40 anos começou seu bouvardiano projeto de construir uma enciclopédia de imagens que explicassem, de alguma maneira, o mundo moderno. Chama-se Atlas, foi exposto na Documenta de Kassel de 1997 e tem mais de 4 mil fotografias extraídas de jornais, revistas e livros, muitas delas referências para séries que se tornariam famosas - e cuja marca registrada é a luz suave que emana de uma pincelada leve, como suas paisagens encobertas pela bruma.
Naturalmente, a pintura de Richter acabou evoluindo para a abstração. O marco zero dessa fase é uma tela de 1976. Nela, o pintor usa a mesma técnica de suas pinturas de representação, encobrindo detalhes que possam sugerir figuras e raspando a superfície para expor traços e pinceladas anteriores. Tanto nas dimensões como no procedimento, Richter reproduz o ato heroico dos expressionistas abstratos americanos diante da tela.
Assim como Richter nunca se prendeu a uma escola, ele experimentou igualmente várias mídias (filmes, vídeos) e até deixou sua marca como design no edifício mais visitado de Colônia, sua catedral, para a qual desenhou um vitral abstrato, quase minimalista em sua concepção. Foi uma maneira de aprimorar uma série de pinturas feitas entre 1966 e 1974, em que dissociou as cores da tradição simbólica.
GERHARD RICHTER
Pinacoteca do Estado. Praça da Luz, 2, telefone 3324-1000. 10 h/18 h (fecha 2ª).
R$ 6 (sábados, grátis). Até 21/8. Abertura sábado, às 11 h.