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junho 27, 2011

Tradição de ruptura por Angélica de Moraes, Istoé

Tradição de ruptura

Matéria de Angélica de Moraes originalmente publicada na Istoé em 10 de junho de 2011.

Sob a batuta de curadora suíça, a Bienal de Veneza tem uma edição eurocêntrica. Entre os destaques, obra de norte-americanos faz alusão e crítica à cultura da guerra

No topo absoluto do ranking dos grandes eventos de artes visuais, a Bienal de Veneza consegue, como o protagonista do livro “O Leopardo”, de Tomasi di Lampedusa, ­transformar-se para garantir que o poder continue em suas mãos. A 54ª Bienal, que abriu no sábado 4, é a pioneira e matriz de centenas de bienais ao redor do mundo. Esta edição, com mais de dez mil metros quadrados de área expositiva, reúne elenco recorde de 83 artistas na curadoria principal, a cargo da crítica suíça Bice Curigan, e 89 países participantes.

Em 2009, os países eram 77. Mais uma vez, são as representações nacionais que garantem algumas das melhores atrações.

Entre as imagens fortes desta edição está a performance de atletas olímpicos dos EUA em uma esteira ergométrica acoplada e sincronizada a um tanque de guerra. O tan­que-aparelho de ginástica, signo do império da força e da competição (extensível ao supostamente pacífico mundo das artes), é uma das excelentes obras que compõem a representação oficial americana. A autoria é da dupla Allora & Calzadilla, eles próprios símbolos da realidade cultural mutante destes novos tempos: Guillermo Calzadilla é cubano naturalizado americano e Jennifer Allora é americana da Pensilvânia. Moram em Porto Rico.

Donos de um humor quase anárquico, a dupla Allora & Calzadilla apresenta pelo menos outra masterpiece: “Algoritmo”, máquina de autoatendimento bancário 24 horas acoplada a um órgão. A música soa quando o visitante insere seu cartão de crédito na máquina. Se o cartão for aceito, saca notas de dinheiro de verdade. Fina ironia à fé e à sacralidade do sistema capitalista.

O Brasil, que na edição passada (2009) teve presença de vários jovens talentos e a impactante instalação de fios dourados, “Ttéia”, de Lygia Pape em lugar de honra, desta vez está fora do radar da curadoria central, em evidente falta de sincronia com a realidade do circuito, que desde o final dos anos 90 vem destacando a produção brasileira. A suíça Bice Curiger fez uma curadoria eurocêntrica. Com algumas pitadas de especiarias politicamente corretas vindas da África e da Ásia. O pavilhão brasileiro trouxe a obra de Artur Barrio em excelente mostra que contextualiza a contribuição do artista desde suas famosas performances antiditadura dos anos 60 até uma instalação feita especificamente para a ocasião. Barrio, que acaba de ganhar o Prêmio Velázquez, um dos maiores do gênero no mundo, concedido pelo governo espanhol, está em plena forma. Extraiu linhas de força das caixas de luz do pavilhão para amarrar todo o espaço, em composição que celebra a penosa trajetória do artista até a iluminação, ou seja, a criação.

“ILLUMinations” (Iluminações) é o título da curadoria central da 54ª Bienal, fazendo um jogo de palavras com nações e iluminações, apostando na improvável reciclagem do papel de guia cultural que a Europa ocupou desde o chamado Século das Luzes (século XVIII). Enquanto os livros de história da arte são reescritos para incorporar a produção de outras culturas e latitudes, Bice Curiger parece nostálgica da Europa como umbigo do mundo.

O resultado desse iluminismo requentado oscila entre o ótimo e o péssimo. O conjunto qualitativamente mais coeso está concentrado no pavilhão La Biennale, com elenco capitaneado por insólito conjunto de telas do mestre veneziano Tintoretto (1518-1594). Felizmente, os artistas sobrevivem a qualquer tese curatorial e garantem a festa dos olhos: a suíça Pipilotti Rist, o alemão Sigmar Polke e a americana Cindy Sherman são fortes presenças. O inglês Nathaniel Mellors apresenta escultura de duas cabeças animatrônicas “conversando”. Um dispositivo servo computadorizado movimenta as cabeças e as expressões faciais de fisionomias moldadas em látex.

No Arsenale há o ótimo suíço Urs Fischer, mas o destaque absoluto é do americano Christian Marclay com o filme “The Clock” (O Relógio), com duração de 24 horas e resultado de uma incrível pesquisa nos arquivos da história do cinema. Marclay reúne passagens de filmes antigos e famosos em que há relógios em cena. O detalhe é que o horário do filme corresponde ao horário real e em ordem cronológica. A obra acabou garantindo a Marclay o Leão de Ouro de melhor artista da exposição. À 54ª Bienal de Veneza não faltam polêmicas nem boa arte, como sempre.

Posted by Cecília Bedê at 4:09 PM