|
junho 13, 2011
Tradição de ruptura por Angélica de Moraes, Istoé
Tradição de ruptura
Matéria de Angélica de Moraes originalmente publicada no caderno de Cultura da revista Istoé em 10 de junho de 2011.
Sob a batuta de curadora suíça, a Bienal de Veneza tem uma edição eurocêntrica. Entre os destaques, obra de norte-americanos faz alusão e crítica à cultura da guerra
54ª Bienal de Veneza – ILLUMInations/ Giardini e Arsenale, Veneza, Itália/ até 27/11
No topo absoluto do ranking dos grandes eventos de artes visuais, a Bienal de Veneza consegue, como o protagonista do livro “O Leopardo”, de Tomasi di Lampedusa, transformar-se para garantir que o poder continue em suas mãos. A 54ª Bienal, que abriu no sábado 4, é a pioneira e matriz de centenas de bienais ao redor do mundo. Esta edição, com mais de dez mil metros quadrados de área expositiva, reúne elenco recorde de 83 artistas na curadoria principal, a cargo da crítica suíça Bice Curigan, e 89 países participantes.
Em 2009, os países eram 77. Mais uma vez, são as representações nacionais que garantem algumas das melhores atrações.
Entre as imagens fortes desta edição está a performance de atletas olímpicos dos EUA em uma esteira ergométrica acoplada e sincronizada a um tanque de guerra. O tanque-aparelho de ginástica, signo do império da força e da competição (extensível ao supostamente pacífico mundo das artes), é uma das excelentes obras que compõem a representação oficial americana. A autoria é da dupla Allora & Calzadilla, eles próprios símbolos da realidade cultural mutante destes novos tempos: Guillermo Calzadilla é cubano naturalizado americano e Jennifer Allora é americana da Pensilvânia. Moram em Porto Rico.
Donos de um humor quase anárquico, a dupla Allora & Calzadilla apresenta pelo menos outra masterpiece: “Algoritmo”, máquina de autoatendimento bancário 24 horas acoplada a um órgão. A música soa quando o visitante insere seu cartão de crédito na máquina. Se o cartão for aceito, saca notas de dinheiro de verdade. Fina ironia à fé e à sacralidade do sistema capitalista.
O Brasil, que na edição passada (2009) teve presença de vários jovens talentos e a impactante instalação de fios dourados, “Ttéia”, de Lygia Pape em lugar de honra, desta vez está fora do radar da curadoria central, em evidente falta de sincronia com a realidade do circuito, que desde o final dos anos 90 vem destacando a produção brasileira. A suíça Bice Curiger fez uma curadoria eurocêntrica. Com algumas pitadas de especiarias politicamente corretas vindas da África e da Ásia. O pavilhão brasileiro trouxe a obra de Artur Barrio em excelente mostra que contextualiza a contribuição do artista desde suas famosas performances antiditadura dos anos 60 até uma instalação feita especificamente para a ocasião. Barrio, que acaba de ganhar o Prêmio Velázquez, um dos maiores do gênero no mundo, concedido pelo governo espanhol, está em plena forma. Extraiu linhas de força das caixas de luz do pavilhão para amarrar todo o espaço, em composição que celebra a penosa trajetória do artista até a iluminação, ou seja, a criação.
“ILLUMinations” (Iluminações) é o título da curadoria central da 54ª Bienal, fazendo um jogo de palavras com nações e iluminações, apostando na improvável reciclagem do papel de guia cultural que a Europa ocupou desde o chamado Século das Luzes (século XVIII). Enquanto os livros de história da arte são reescritos para incorporar a produção de outras culturas e latitudes, Bice Curiger parece nostálgica da Europa como umbigo do mundo.
O resultado desse iluminismo requentado oscila entre o ótimo e o péssimo. O conjunto qualitativamente mais coeso está concentrado no pavilhão La Biennale, com elenco capitaneado por insólito conjunto de telas do mestre veneziano Tintoretto (1518-1594). Felizmente, os artistas sobrevivem a qualquer tese curatorial e garantem a festa dos olhos: a suíça Pipilotti Rist, o alemão Sigmar Polke e a americana Cindy Sherman são fortes presenças. O inglês Nathaniel Mellors apresenta escultura de duas cabeças animatrônicas “conversando”. Um dispositivo servo computadorizado movimenta as cabeças e as expressões faciais de fisionomias moldadas em látex.
No Arsenale há o ótimo suíço Urs Fischer, mas o destaque absoluto é do americano Christian Marclay com o filme “The Clock” (O Relógio), com duração de 24 horas e resultado de uma incrível pesquisa nos arquivos da história do cinema. Marclay reúne passagens de filmes antigos e famosos em que há relógios em cena. O detalhe é que o horário do filme corresponde ao horário real e em ordem cronológica. A obra acabou garantindo a Marclay o Leão de Ouro de melhor artista da exposição. À 54ª Bienal de Veneza não faltam polêmicas nem boa arte, como sempre.