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Como atiçar a brasa

 


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abril 12, 2011

Laurie Anderson usa a tecnologia com delicadeza para transmitir sensações no CCBB por Marisa Flórido, o Globo

Laurie Anderson usa a tecnologia com delicadeza para transmitir sensações no CCBB

Matéria de Marisa Flórido originalmente publicada no Segundo Caderno do jornal O Globo em 11 de abril de 2011.

Deitamos a cabeça em um travesseiro e logo uma voz feminina e inebriante nos sussurra: “Você sabe quando, às vezes, você escuta alguém gritando e entra por um ouvido e sai pelo outro? E às vezes, quando você escuta alguém gritando, o grito penetra no meio da cabeça e fica lá para sempre?” Um dúbio sentimento então nos assalta: por um lado, o amparo de almofadas e palavras, a cadência da voz que nos acalenta em ondas e flutuações, a afirmação prosaica e poética. Por outro, a vertigem e a queda, a afirmação que de tão prosaica ressoa estranha, o estremecimento do sentido: é a dissipação das palavras, o grito que perfura a linguagem, que vaza o feliz desenrolar das histórias e dos sonhos. O grito de alguém que nos atravessa, o grito que teima em permanecer como se fôssemos uma câmara de ecos, repetindo o eterno e lancinante golpe do outro em mim. E não seria esse o corpo — transparente e opaco — da palavra? Ser atravessada para que o outro fale, repetir seu vazio: “Não sou eu quem fala, em meu silêncio, é o outro que fala em mim”. Dar existência ao outro é sua condição de existência?

‘Uma contadora de histórias’
“I in U — Eu em tu” mostra de Laurie Anderson no CCBB com curadoria de Marcello Dantas, reúne trabalhos de 40 anos de produção. “Ainda nos anos 1970 em Nova York, suas obras, espetáculos, performances, livros, filmes, vídeos, instalações e poemas definiram a linguagem que foi seguida durante as últimas quatro décadas por artistas de todo o mundo. Ela é uma artista seminal, que abriu a fronteira de possibilidades para que todo um espectro de expressão fosse aceito”, escreve o curador.

Para esquivar-se das rotulações fáceis, Laurie Anderson se enuncia como “uma contadora de histórias”: “quero contar uma história sobre uma história”. E, para fazê-lo, para que as palavras saiam de sua invisibilidade e ganhem voz, corpo, imagem, som, a artista transitaria pela performance, pela música, pela literatura, pelas artes visuais, pelo filme, pelos eletrônicos, pelos instrumentos. São histórias autobiográficas, narrativas míticas ou teorias insólitas, relatos de sonhos ou de acontecimentos cotidianos. Frases que se repetem aqui e ali, para recombinar-se com outras imagens e sons, outros lugares e corpos. Condensações e dispersões poéticas que extraem desses relatos e frases — que a princípio nos parecem tão corriqueiros e familiares — o inesperado, o desfecho intempestivo, o desvio imprevisto e sobressaltado. É a delicadeza desse susto que faz essa exposição única e imperdível.

É o susto de um duplo movimento: um que retira a palavra de seu “achatamento”, como diz a artista, para multiplicá-la, dar-lhe timbres e tonalidades, direções e fugas, memórias e sentidos; outro que corrompe a língua e a linguagem, que produz amnésias e balbucios, mas cujo golpe abre frestas para retê-la como energia e potência. Pois a palavra é tão capaz de criar mundos como de apagá-los, “de fazê-los desaparecer”.

Vemos a artista distorcer a voz por dispositivos eletrônicos, alterá-la de várias formas, proliferá-la em incontáveis vozes, colocá-las para conversar. Vemos seus duplos, suas marionetes eletrônicas, seus disfarces em vídeos. Como se fosse preciso diluir a fonte e a semelhança original — o suposto “Eu” que se enunciaria e se refletiria idêntico a si mesmo — no estranhamento com o outro. Empréstimo de seu corpo, imagem, voz para fazer o outro ecoar ali, para fazer o outro transitar e existir através de si. Como as palavras, talvez.

Assistimos ao vídeo da artista transformando o próprio corpo em instrumento de percussão, extraindo sons, por movimentos elegantes e secos, de uma bateria eletrônica sob o macacão. Ouvimos sua música em vídeos e instalações, por vezes entre a fala e o canto extraído do violino, o instrumento que a acompanha desde muito jovem, e cujo som, para ela, assemelha-se à voz humana e feminina. Vemos esse instrumento, essa espécie de seu alter-ego, como o definiu, passar pelas mutações que submete a si própria: como o Viophonograph, misto de toca-discos e Violino, o Self Playing Violin, o violino que toca sozinho, o Arco Neon.

Sons que viram vibrações
“I in u — Eu em tu ”, que dá título à mostra, foi extraído do verso de George Herbert, poeta do século XVII: “Agora eu em você sem nenhum movimento do corpo”. Em “Handphone table”, vozes, sons e melodias viajam por uma enorme távola redonda e são transmitidos por conversores de energia à superfície da mesa. Ao encostarmos os cotovelos e tapar os ouvidos em determinados pontos, sentimos a sonoridade que vibra através dos ossos de nossos braços. O corpo torna-se assim uma câmara de ecos, de ressonâncias da artista nele, condutor de sua alteridade. Agora você em mim.

Posted by Alice Dalgalarrondo at 4:59 PM