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abril 12, 2011
As pinturas cegas de Tomie por Camila Molina, O Estado de S. Paulo
As pinturas cegas de Tomie
Matéria de Camila Molina originalmente publicada no caderno de Cultura do jornal O Estado de S. Paulo em 12 de abril de 2011.
Pela primeira vez, obras dos anos 50 e 60 são mostradas em conjunto
Houve uma época em que Tomie Ohtake resolveu vendar seus olhos para criar obras que ela mesma chama de "pinturas cegas". Era o fim dos anos 1950, começo dos 60, quando a artista se lançou a essa experimentação, num "momento capital de Tomie na vanguarda", como diz o curador Paulo Herkenhoff - é que a artista pintava "sem olhar para o real" e inominando suas imagens. Por muito tempo, os quadros dessa fase ficaram como que guardados, vez ou outra figurando em exposições, mas, isolados. Somente agora, aos 97 anos, Tomie apresenta pela primeira vez um conjunto reunido de cerca de 32 de suas obras dessa série, em exposição a ser inaugurada hoje para convidados e amanhã para o público em uma das salas do instituto que leva seu nome.
"O objetivo primordial do esforço crítico e historiográfico é tornar visível esse corpus de "pinturas cegas" para sua mais efetiva inscrição na história da arte", afirma Herkenhoff, curador da mostra. Ele, que vem conversando com Tomie há anos para realizar essa exposição, considera que exista algo até de radical na atitude da artista no contexto em que criou essas obras. "Ela rompe com a dualidade entre o abstracionismo geométrico e o informal", diz ainda Herkenhoff.
Mais ainda, a experiência das "pinturas cegas" indicam o interesse de Tomie pelo zen-budismo e pelas questões da fenomenologia de Merleau-Ponty - ou seja, a experiência da percepção do mundo através da passagem para os sentidos, como a busca da plena experiência.
Foi o crítico Mário Pedrosa, grande admirador e incentivador da artista, que na época sugeriu a ela que lesse Merleau-Ponty e também, como já afirmou Tomie ao Estado, que pintasse com os olhos fechados. A artista, nascida em Kyoto, voltou-se à pintura apenas aos 39 anos, já vivendo no Brasil. Criou, primeiramente, obras figurativas. Mas seu caminho para o que ela chama de "simplicação", ou sintetização, que a levou ao abstracionismo de formas e gestos puros - linhas, círculos, por exemplo -, unida ao desempenho da cor em sua obra, também incorporou a experiência das "pinturas cegas": a partir do não-ver, ir atrás do "sentido do olhar". "Fiz uma dessas pinturas e quando abri os olhos, uma imagem apareceu e não era uma forma certa", já contou a artista.
Oceano. Certa vez, Tomie chorou ao ver uma de suas obras da série "pinturas cegas", de predomínio do branco, em uma das salas da 24.ª Bienal de São Paulo, em 1998. Na ocasião da mostra, com curadoria do próprio Herkenhoff - e considerada uma das melhores edições da história das Bienais -, a tela de Tomie estava ao lado de obras brancas de criadores como o russo Kasimir Malevich, de Lucio Fontana, Yves Klein, Soto, Robert Rauschenberg e Robert Ryman. Esse segmento, afirma o curador, "correspondia a um mundo sem centro, constituído depois da Segunda Guerra e formado por herdeiros do branco sobre o branco da pintura suprematista".
Agora, Herkenhoff resgata uma teoria, a do ponto cego (punctum cecum), "região no campo visual do disco ótico no qual a visão entra em colapso", para analisar as obras de Tomie, que, na mostra, são as realizadas entre 1959 e 1962. "Esses trabalhos colocam a relação entre artes visuais e cegueira", diz o curador. Acompanhando as "pinturas cegas" da exposição, Herkenhoff colocou um mapa do ponto cego para os visitantes entenderem a analogia.
A montagem da mostra prima por um caráter de interioridade, colocando as telas em ambiente escuro. São obras de formas livres, como um "oceano", em predomínio de brancos, pretos e cinzas - mas há também o marrom, que remete à cor das primeiras abstrações de Tomie; o vermelho, azul, verde. Por vezes, é como se víssemos um certo grafismo nos trabalhos o que, inevitavelmente, é a referência à formação do desenho (e do ideograma) no Japão de Tomie.