|
abril 12, 2011
Mostra reúne série de "pinturas cegas" de Tomie Ohtake por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Mostra reúne série de "pinturas cegas" de Tomie Ohtake
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no caderno Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 12 de abril de 2011.
Na virada dos anos 50 para os anos 60, artista japonesa radicada no Brasil fez quadros com os olhos vendados
Série ilustra dissolução do vigor construtivo na hora em que artistas passaram a buscar uma dimensão espiritual
Escotoma, da palavra grega para escuridão, é o ponto cego natural do olho. Na passagem dos anos 50 para os anos 60, Tomie Ohtake exaltou esse ponto, negando a visão, e fez uma série de quadros com os olhos vendados.
São abstrações um tanto atmosféricas, tempestades de cores primárias ou numa paleta reduzida de ocres, cinzas e negros que despontam num vendaval fuliginoso.
Juntas agora numa exposição no Instituto Tomie Ohtake, essas telas atestam a evolução de estados da cegueira, a imagem construída e arquitetada no escuro, sobre os lampejos de sua ausência.
"Há um inconsciente ótico, mas com um plano, um projeto", resume Paulo Herkenhoff, curador da mostra. "É entre o olhar e a cegueira."
E nesse intervalo, Ohtake parece plasmar o pó nervoso da escuridão. No quadro, sulcos na tinta feitos com o cabo do pincel imitam as marcas fincadas na retina que sobram como rastro da luz.
Mas qualquer violência desses raios está subjugada à placidez dessa tormenta residual, ecos de luz que se articulam como se guiados pela memória, resquícios de um projeto que afogam o impacto do gesto no peso da tinta.
Também cria pontos de gravidade com manchas negras, que atraem mais do que repelem o olhar, como se exacerbassem na cor a potência abstrata da ausência.
Ohtake ilustra, querendo ou não, esse embate do momento, a queda de braço entre a razão orquestrada e os devaneios de um corpo vivo.
Passado o vigor construtivo do começo da década, o neoconcretismo ganha vulto roçando pulsões metafísicas, a liberdade no traço, a busca de uma dimensão espiritual e ao mesmo tempo carnal.
Ecos desses gestos livres da visão, dessa caligrafia zen de Ohtake, depois ressurgem, como relembra Herkenhoff, nos trabalhos de Mira Schendel e nos experimentos com haicais dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos.
Na Bienal de São Paulo, em 1998, uma de suas pinturas cegas, toda branca, estava ao lado de monocromos de minimalistas, pautados pela ordem e não pela figura.
"É sobretudo uma passagem do tempo, ela não figura nada", diz Herkenhoff. "Tem uma dimensão do vazio."