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março 10, 2011
A voz dos poucos e barulhentos ou: a emergência das redes culturais por Rodrigo Savazoni, Trezentos
A voz dos poucos e barulhentos
ou: a emergência das redes culturais
Artigo de Rodrigo Savazoni originalmente publicado no blog Trezentos em 3 de março de 2011.
O jornalista Leonardo Brant, do site Cultura e Mercado, escreveu um texto hoje em defesa da Ministra da Cultura Ana de Hollanda. Brant, que vem mantendo estreita colaboração com a coordenação do atual ministério, inclusive se prontificando a intermediar o diálogo dos gestores da pasta com os movimentos de cultura digital, afirma que a ação nas redes sociais e na imprensa contra as medidas tomadas por Ana de Hollanda é resultado de um esforço orquestrado por poucos e barulhentos atores que apoiavam a gestão de Gilberto Gil e Juca Ferreira.
Não é verdade. Temos debatido as posições do Ministério de Ana de Hollanda, Vitor Ortiz e Antonio Grassi – a trinca de gestores que comanda a pasta – a partir dos fatos que eles mesmos geraram, das indicações eloqüentes que têm sido dadas. Não porque tenhamos quaisquer compromissos com este ou aquele grupo, mas porque somos favoráveis à continuidade das vitoriosas políticas culturais do governo Lula. Não por meio de uma central de boatos e falsos argumentos contra o Ministério, mas sim do debate público.
Portanto, é preciso dizer, a leitura de Brant não tem lastro na realidade e reduz uma ação legítima a um mero jogo subterrâneo de poder.
É sempre bom recuperar os fatos.
Como essa história começa?
Logo que foi anunciada Ministra da Cultura, em entrevista coletiva na sede do BNDES, Ana de Hollanda demonstrou interesse em debater a questão dos direitos autorais, utilizando-se de argumentos comuns aos opositores da proposta de revisão da lei brasileira de propriedade intelectual, que havia sido objeto de consulta pública em 2010.
Uma rede espontânea de ativistas e artistas então produziu uma carta aberta, publicada na plataforma CulturaDigital.br, propondo diálogo. Isso ainda em 2010. A carta jamais foi respondida por Ana ou sua equipe.
Com quinze dias à frente do Ministério da Cultura, a ministra ordenou a retirada da licença Creative Commons do site, mesmo com pessoas próximas e de sua confiança orientando-a a não fazer isso. Nesse momento, sua equipe de secretários nem sequer tinha sido nomeada, o que ocorreu um dia depois, em meio às críticas pela decisão política arbitrária – que Ana defendeu como uma mera escolha técnica.
A partir daí, uma série de fatos ligados à questão dos direitos autorais começou vir à tona, todos eles demonstrando uma inflexão favorável aos atores contrários à reforma.
É bom lembrar que o principal argumento utilizado pelo atual Ministério foi o de que houve pouco debate nos últimos anos. Não é verdade. Nunca se debateu tanto o tema. Até por isso, o grupo que agora irá dirigir o debate sobre direitos autorais estava sendo derrotado, por inconsistentes que são suas posições, mas conseguiu se articular para coordenar o processo.
A ação contra as decisões (e não contra a pessoa) de Ana de Hollanda visam a garantir a continuidade que se consagrou vitoriosa com Dilma Roussef.
Não se pode reduzir uma política baseada em princípios a um mero movimento de deslocamento de poder. O levante que está nas ruas é reflexo de escolhas e ações da atual administração. É uma reação ao processo de desmonte das conquistas do governo Lula no campo cultural, e não uma tentativa de preservação de espaço.
É uma articulação para que os Pontos de Cultura continuem a ser o centro das políticas. Para que a ideia dos pontos não seja substituída por uma visão elitista de construção de equipamentos culturais reponsáveis por “levar cultura” a quem não tem.
Outro aspecto que me força a escrever esse texto é a percepção de que a mesma arrogância que marcou algumas das decisões recentes do Ministério da Cultura surge na leitura que Brant faz de seus opositores.
Trata-se de um velho truque: a tentativa de desqualificar o interlocutor, questionando sua condição de agente político. Esse movimento denota má intenção ou desconhecimento (1) das dinâmicas sociais recentes do país e (2) da forma como a política se organiza no contexto das redes interconectadas.
Sobre o primeiro ponto, vale dizer que nos últimos anos o complexo país em que vivemos viu emergir uma série de movimentos e redes ligados ao campo político-cultural. Parte desse crescimento foi induzido pelo do-in antropológico promovido por Gilberto Gil e sua equipe.
Durante o governo Lula, os agentes da diversidade cultural foram reconhecidos e alçados à condição de protagonistas da cultura, o que ampliou o arco das políticas públicas de cultura de forma pioneira. Também é preciso dizer que o movimento de comunicação, cercado pela escolha de Hélio Costa para dirigir a pasta, teve no MinC de Lula um importante aliado.
Esse movimento que espontaneamente age em rede tem em comum o fato de se beneficiar do avanço das novas tecnologias, filosoficamente e como instrumento de luta. Ou seja, a internet, ao permitir a livre circulação de bens culturais, (dês)organiza a economia tradicional da cultura, baseada no copyright, e redefine noções como centro-periferia, local-global, sucesso-fracasso. Também opera como fundamental instrumento de organização em rede, o que para as novas gerações aparece como alternativa estruturante de ação política – em face do ocaso dos partidos e das organizações tradicionais.
Somos muitos os reunidos nessa operação descentralizada pela continuidade das políticas de Gil e Lula: Partido da Cultura, Movimento Música para Baixar, Circuito Fora do Eixo, Festivais Independentes (Abrafin), Casas Associadas (circuito de casas de espetáculo), Pontos de Cultura, Movimento Cultura Digital, Campanha Banda Larga: um direito seu! Frente pela Reforma da Lei de Direitos Autorais, Movimento Mídia Livre, Blogueiros Progressistas, Mega Não (contra o PL Azeredo), Movimento Software Livre, entre tantos outros.
Esses organismos todos supracitados ainda não são os únicos agentes relevantes desse processo. Porque muito do que surgiu nos últimos dias é fruto do cidadão autônomo e consciente, sem organização ou militância definida, que vem fazendo valer o seu poder de mídia.
Estamos, pois bem, diante de um sistema complexo, composto por gente que agita ou produz cultura, que realiza, estuda e movimenta, dentro e fora das Universidades, dentro e fora das estruturas do mercado tradicional, dentro e fora dos partidos políticos (muita gente do Partido dos Trabalhadores tem participado dessa mobilização).
Um enxame, sem centro, sem lideres, que não começou com uma reunião nem irá terminar assim. É a própria dinâmica da vida em rede se expondo, e – por isso, só por isso – acaba por fazer barulho.
Sigamos, então, com o debate, mas sem tratar aliados históricos das causas da democratização da cultura e da comunicação, que ajudaram a construir o governo Lula e a vitória de Dilma, de forma desrespeitosa. Isto não é um convescote. São os rumos do país que estão em questão.
É preciso lembrar constantemente aos nossos políticos que os processos de produção cultural já não são mais os mesmos; que nós, brasileiros, também já não somos mais os mesmos e que ela própria, a política, já não está mais sendo feita da mesma forma que era há bem pouco tempo atrás. E agora que estamos mudando, não dá para retroceder. Uma vez copyleft, como voltar a copyright? Como ignorar os movimentos culturais-digitais-sociais-artísticos tão interessantes que estão acontecendo país afora e criar estratégias políticas que não os levem em conta?
Esperamos que os ventos voltem a soprar a favor da cultura e da educação brasileiras!