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dezembro 14, 2010
Hora de reflexão por Gustavo Fioratti, Folha de S. Paulo
Matéria de Gustavo Fioratti originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 14 de dezembro de 2010.
Com teor conceitual, mostra de viés político é contraponto ao vazio , mas não atinge meta de público
"Há sempre um copo de mar para um homem navegar": a frase sugerida como tema acabou descrevendo um presságio. O verso do poeta alagoano Jorge de Lima deu norte para uma Bienal de São Paulo de navegação não muito palatável.
Até anteontem, último dia do evento, 159 artistas expuseram na mostra avessa ao olhar instantâneo, com obras que demandavam até meia hora de atenção.
Encontros fundamentaram plataformas de diálogo. E 80 dias para assimilar a curadoria de forte inclinação conceitual de repente pareceram curtos.
Resultou que cerca de 530 mil pessoas passaram pelos corredores do pavilhão, o que destronou a expectativa do um milhão. Os números também foram impulsionados por um programa de educação que atendeu 300 mil.
"De qualquer forma, houve um salto em relação a edição passada, que trouxe somente 180 mil visitantes", defende o presidente da fundação, Heitor Martins.
Num mundo que pende para a alienação, o viés político deu as cartas. Os excessos provocaram instituições públicas e privadas. A Justiça censurou uma obra que panfletava em época de eleição. A OAB-SP quis vetar representação de assassinatos fictícios. Ambientalistas suspenderam o voo dos urubus.
Tudo em nome de um bem-estar normativo. Tudo pela sobriedade, justamente num lugar onde a embriaguez desvenda caminhos para a lucidez. "Acho que essa foi a contribuição dessa Bienal, seus problemas precisam ser revistos", defende a artista Graziela Kunsch, que apresentou trabalhos em vídeos e também debates.
Para ela, o sistema de vigilância ostensivo empregado desde a pichação de duas obras confronta um ambiente destinado à reflexão. "Os visitantes deviam ficar à vontade. Para participar de uma Bienal, o artista precisa permitir que seu trabalho corra riscos, inclusive de ser pichado ou destruído", diz.
EXCESSOS
O zelo dos seguranças acompanhou outros excessos. "Acho que tem trabalho demais, não precisava tanto", diz a servidora pública Janaína Castoldi, 33, que se diz "fã da Bienal do Vazio", em referência à controversa edição de 2008. O vazio, justamente ele, que nesta mostra serviu de contraponto.
Para o engenheiro Fabio Beivelis, 67, que já viu "mais de 15 bienais", a fartura está longe de ser um ponto negativo. "Acho que foram muito recorrentes as obras que precisaram vir com um manual de explicações", diz. "Mas isso não é necessariamente ruim. Isso também é arte."
O ajuste, para Beivelis, devia ser feito na climatização do edifício. O último dia, anteontem, foi desconfortável. O calor prejudicou sobretudo os visitantes interessados em vídeos, exibidos em salas apinhadas de gente.
A boa movimentação deu impulso à apresentação do grupo Tablado de Arruar em um dos chamados terreiros, o que contrastou com parte da programação.
Durante a temporada, performances e debates minguaram com a falta de público. Como a primeira apresentação da peça "Two Drawings" (dois desenhos) de Guy de Cointet (1934-1983), por Mary-Anne Duganne-Glicksman, vista por um grupo de educadores, apenas.
Mas houve também momentos bastante calorosos de "happenings". Rosângela Rennó foi aplaudida demoradamente por seu leilão de objetos antigos retrabalhados. O Núcleo Bartolomeu de Depoimentos também festejou a presença do movimento hip-hop na Bienal com uma plateia superparticipativa.