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novembro 22, 2010
Arte sem arte por Ferreira Gullar, Folha de S. Paulo
Matéria de Ferreira Gullar originalmente publicada na Ilustrada da Folha de S. Paulo em 21 de novembro de 2010
Considero uma piada achar que todas as pessoas têm o mesmo talento artístico de Da Vinci e de Van Gogh
Não tenho, a pretensão de estar sempre certo no que escrevo, nas opiniões que emito, muito embora acredite seriamente nelas.
Não foi à toa que, de gozação, me apelidaram de profissional do pensamento, por tanto atazanar os amigos com minhas indagações e tentativas de explicação. Por isso também volto a certos temas, desde que descubra, ao repensá-los, modos outros de enfocá-los e entendê-los.
Se há um tema sobre o qual estou sempre indagando é a situação atual das artes plásticas, precisamente porque exorbitaram os limites do que -segundo meu ponto de vista- se pode chamar de arte. Sei muito bem que alguém pode alegar que arte não se define e que toda e qualquer tentativa de fazê-lo contraria a natureza mesma da arte.
Esse é um argumento ponderável e muito usado ultimamente, mas acerca do qual levanto dúvidas. Concordo com a tese de que arte não se define, mas não resta dúvida de que, quando ouço Mozart, sei que é música e, quando vejo Cézanne, sei que é pintura. Logo, a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de definir o que é arte não elimina o fato de que as obras de arte têm qualidades específicas que as distinguem do que não o é.
Do contrário, cairíamos numa espécie de vale-tudo, numa posição insustentável mesmo para o mais radical defensor do que hoje se intitula de arte contemporânea.
Isto é, o sujeito teria de admitir que uma pintura medíocre tem a mesma qualidade expressiva que uma obra-prima e que ele mesmo teria de se obrigar a gostar indistintamente de toda e qualquer coisa que lhe fosse apresentada como arte. Por mais insensato que possa ser alguém na defesa de uma tese qualquer, não poderia evitar que esta ou aquela coisa que vê ou ouve ou lê tenha a capacidade maior ou menor de sensibilizá-lo, emocioná-lo ou deixá-lo indiferente.
Creio não haver dúvida de que, seja ou não possível definir o que é arte, há coisas que nos emocionam ou nos fascinam ou nos deslumbram e outras que nos deixam indiferentes.
Se se der ou não a tais coisas a qualificação de arte, pouco importa: é inegável que a "Bachiana nº 4" é belíssima e que um batecum qualquer não se lhe compara, não nos dá o prazer que aquela obra de Villa-Lobos nos dá.
Do mesmo, um desenho de Marcelo Grassmann me encanta e um desenho medíocre me deixa indiferente. Mas um artista conceitual -ou que outras qualificação se lhe dê- responderá que esta visão minha é velha, ultrapassada, pois ainda leva em conta valores estéticos, enquanto a nova arte não liga mais para isso. Mas pode haver arte sem valor estético? Arte sem arte?
Essa pergunta me leva à experiência radical de Lygia Clark (1920-1988), sob muitos aspectos antecipadora do que hoje se chama arte conceitual.
Dando curso à participação do espectador na obra de arte -elemento fundamental da arte neoconcreta-, chega à conclusão de que pode ele ir além, de espectador-participante a autor da obra, bastando, por exemplo, cortar papel ou provocar em si mesmo sensações táteis ou gustativas. Assim atingimos, diz ela, o singular estado de arte sem arte.
De fato, esse rumo tomado por alguns artistas resultou da destruição da linguagem estética e na entrega a experiências meramente sensoriais, anteriores portanto a toda e qualquer formulação.
Descartando assim a expressão estética, concluíram que se negar a realizar a obra é reencontrar as fontes genuínas da arte. E, se o que se chama de arte é o resultado de uma expressão surgida na linguagem da pintura, da gravura ou da escultura, buscar se expressar sem se valer dessa linguagem seria fazer arte sem arte ou, melhor dizendo, ir à origem mesma da expressão.
Isso nos leva, inevitavelmente, a perguntar se toda expressão é arte. Exemplo: se amasso uma folha de papel, o que daí resulta é uma forma expressiva; pode-se dizer que se trata de uma obra de arte? Se admito que sim, todo mundo é artista e tudo o que se faça é arte.
Já eu considero uma piada achar que todas as pessoas têm o mesmo talento artístico de Leonardo da Vinci e de Vincent van Gogh ou que esse talento seja apenas mais um preconceito inventado pelos antigos. As pessoas são iguais em direitos, mas não em qualidades.
Como poeta, Gullar sabe que as palavras mudam naquilo que referem. "Arte" não é a mesma palavra que significava pintura, gravura... "Arte" é uma palavra desgastada, usada para uma gama enorme de trabalhos e por muitos.
Para a massa um mix de cultura pop é arte. Nos meios especializados "arte" é aquilo que o sistema estabelece. Então um trabalho medíocre (nesse âmbito micro de museu, críticos, galerias e artistas) pode circular como arte.
Já não é qualidade expressiva/estética que determina "arte".
Agora, diante destas palavras que redigi, sinto como se me fosse arrancado algo. Estou prestes a dizer que "arte" é uma palavra sem o sentido que havia e estamos tateando sem saber onde.
Vocábulo necessário ainda para que não tenhamos todo um sistema de classificação renegado, precisamos renovar a língua assim como "arte" foi renovada. Ou renovar todo pensamento nessa questão. Talvez fosse mais sincero se pensasse-mos em expressão estética, relações e sentimentos, assim como as qualidades que determinam estes fatores na obra, ao invés de pensar "isto é arte?".
Posted by: Marcelo Marzola Leite at dezembro 7, 2010 9:08 AMCèzanne, também foi criticado e hostilizado pelo público, críticos e artistas.
Aix-en-Provence, cidade onde nasceu e morreu não possui uma pintura do artista.
Ele sofreu, a discriminação, que os artistas conceituais recebem na pele hoje. Os críticos sempre detestaram o novo, eles só criticam a obra dos conhecidos e falam mal, dos que estão de fora do lago.