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outubro 18, 2010
Entre a arte e o cativeiro por Paula Alzugaray e Nina Gazire, Istoé
Matéria de Paula Alzugaray e Nina Gazire originalmente publicada na Istoé em 8 de outubro de 2010
Cercada de manifestos e polêmicas, a instalação "Bandeira Branca", de Nuno Ramos, com seus urubus, reacende antiga questão sobre a presença de animais em obras de arte
Graças aos seus três urubus, a obra “Bandeira Branca” é o acontecimento mais movimentado dessa 29ª Bienal. No dia da abertura, em 25 de setembro, manifestantes de ONGs de proteção aos animais se posicionaram diante da instalação segurando cartazes com dizeres que pediam a libertação das aves. Chegaram a ser confundidos com a própria obra. “Me entristece o fato de que apenas os animais estejam sendo ressaltados. Espalharam informações erradas sobre como os urubus estão sendo tratados”, lamenta Nuno Ramos. Na obra, os urubus estão cercados por uma rede de proteção e têm como poleiro várias caixas de som que, de tempos em tempos, tocam uma tradicional marchinha de Carnaval. “Essa cerca delimita o espaço do público, não o dos urubus, que estão em destaque e tomam conta da Bienal”, diz o artista, que define seu trabalho como um “antipenetrável”. Mas isso só até a obra ser invadida e pichada com a frase “Libertem os urubu” (assim mesmo, no singular), por um homem que rasgou a rede de proteção no dia da abertura. Monitorados diariamente por uma equipe, os pássaros nasceram em cativeiro e foram criados no Parque dos Falcões, que cuida de aves usadas para fins educacionais. Até então, tinham a permanência na Bienal autorizada pelo próprio Ibama, que na sexta-feira 1º de outubro voltou atrás, alegando que as instalações estavam inapropriadas para a manutenção dos animais. Até a terça-feira 5, a Bienal não havia se posicionado sobre a eventual retirada das aves.
Outro caso de restrição atinge a exposição “Museu É o Mundo”, de Hélio Oiticica, no Rio, que teve a instalação do penetrável “Tropicália” vetada pela prefeitura da cidade. Uma lei municipal proíbe a apresentação de animais em cativeiro. “Ao montarmos a “Tropicália” em São Paulo, gastamos dinheiro para manter os animais dentro das exigências do Ibama. Não estamos explorando os animais, já que são criados em cativeiro. Além do mais, a exposição é gratuita e tem a mesma função de um zoológico”, diz o curador Cesar Oiticica Filho, argumentando que a lei foi aplicada erroneamente, já que se refere à exploração de animais retirados de habitats naturais.
Ambos os casos, o penetrável de Oiticica ou o “antipenetrável” de Nuno Ramos, remetem a antigas polêmicas. Na instalação “Sem Título (12 Cavalos)”, de 1969, o artista grego Jannis Kounellis expôs cavalos vivos dentro da Galleria L’Attico, em Roma. O artista foi um dos representantes do movimento arte povera (em italiano significa arte pobre), que na década de 1960 buscava, com o uso de materiais cotidianos, romper com os processos industriais, mostrando, assim, o empobrecimento de uma sociedade voltada ao acúmulo de riquezas materiais. Outro caso clássico teve como protagonista o alemão Joseph Beuys, que em 1974 embarcou em um avião de Berlim rumo a Nova York e desembarcou direto em uma ambulância que o levou paraa René Block Gallery. Lá permaneceu isolado por alguns dias com um coiote. Vivo, é claro. “Beuys conseguiu inverter o dentro e o fora. Será que essa experiência não valeu?”, comenta o artista Nuno Ramos.
Em 1967, Cildo Meireles colocou um canarinho-belga dentro de uma gaiola na instalação “Desvio para o Vermelho”. Atualmente, montada no Instituto Inhotim, em Minas Gerais, a obra tem, em vez de um só canarinho, quatro aves que se revezam entre si. Quando não estão em cena, elas descansam em um viveiro e se alimentam com ração natural à base de betacaroteno para manterem a penugem na cor vermelha. Mas o artista é lembrado menos pelos canários que pela performance “Tiradentes: Totem-Monumento ao Preso Político”, de 1970, em que, em protesto contra a ditadura, realizou um ritual de queima de dez galinhas vivas durante um evento de arte em Belo Horizonte. “Jamais faria aquilo de novo, mas naquela época o que estava em jogo era a vida humana. Para você ter ideia, um representante de uma organização em prol dos animais estava presente e me parabenizou pelo trabalho”, lembra o artista.
Denúncias e proibições à parte, tanto a obra de Oiticica quanto a de Nuno Ramos ganham sentido e fundamentação apenas na presença dos animais. Sem eles, as obras perdem seu estatuto artístico e viram meros cenários, já que os animais são seus principais atores.
“A natureza é uma construção humana. Se o cativeiro é o grande problema, então temos que repensar toda a nossa alimentação e o modo como lidamos com os animais em todas as esferas”, afirma Nuno Ramos.