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setembro 27, 2010
Às portas da Bienal, "pixo" busca modelo de negócio no mercado de arte por Diógenes Muniz, Folha de S. Paulo
Matéria de Diógenes Muniz originalmente publicada na Ilustríssima da Folha de S. Paulo em 17 de setembro de 2010
Qual é o preço do "pixo"? Para quem tenta afastá-lo da fachada da sua empresa ou residência, a lata de verniz antirabisco sai por R$ 170. Para quem quer comprá-lo, há duas opções de formato, bem mais caras: as fotografias dos ataques a prédios ou as "tags" --folhas com signos idênticos aos que os pichadores espalham pela cidade, famosas entre quem pratica a modalidade, mas que não foram assimiladas por colecionadores de arte. Ainda.
Enquanto a sociedade debatia se pichadores são artistas marginalizados ou só criminosos em busca de atenção, ou ambos, um grupo em São Paulo entrou no circuito das artes.
Quem visitar a Bienal deste ano perceberá que aumentou o espaço da pichação no maior palco das artes visuais da América Latina. Em 2008, os invasores não tiveram tempo de rabiscar muito mais que um andar do pavilhão do Ibirapuera e quebrar uma vidraça do térreo para escapar da polícia.
Desta vez, os três andares da 29ª Bienal, que abre no fim do mês com o tema "arte e política", receberão materiais organizados pelo trio intitulado "Pixação SP" (composto pelo fotógrafo Adriano "Choque", 23, e pelos pichadores Djan Ivson, 26, e Rafael Guedes Augustaitiz, 26).
Augustaitiz e Ivson lideraram o ataque com spray ocorrido em 2008 ao Pavilhão Ciccillo Matarazzo, que terminou na prisão em flagrante de Caroline Pivetta, enquanto Choque registrava a performance com sua câmera Canon Rebel. Caroline ficou encarcerada na Penitenciária Feminina de Santana por 50 dias. Foi condenada a quatro anos de prisão, em regime semiaberto, por formação de quadrilha e destruição de bem protegido por lei --recorre em liberdade.
Oficialmente, a Bienal 2010 deve expor convites de festas, "tags", vídeos e fotos. Haverá também uma mesa de debates sobre o tema. Um dos nomes cogitados para mediação é o da filósofa Márcia Tiburi, para quem a pichação "é a única lírica que nos resta". CEUs (Centro Educacionais Unificados) pela cidade exibirão o DVD "100 Comédia 3", que mostra bastidores e estratégias de invasões a prédios e demarcações de parapeitos pela capital paulista (veja trailer).
A organização do evento descarta a possibilidade de pichação no pavilhão, alegando que isso "esvaziaria" a potência do que é visto nas ruas. "A pichação ocorre lá fora", diz Moacir dos Anjos, co-curador da Bienal. A questão é tratada com ambiguidade e certa provocação pelos pichadores.
"Vamos convidar o movimento e eu não tenho domínio sobre nenhum pichador. Não posso garantir nada. Se alguém vai pichar ou não, se algum quadro vai ser riscado ou não, isso aí a gente só vai saber no dia. E aí vamos ver mesmo se eles [Bienal] estão prezando mesmo pela pichação. A gente não precisa do aval de ninguém para fazer [pichar]. Se a gente quiser pichar lá tudo, desde o chão até uma obra de Antonio Dias, a gente vai, picha e foda-se", diz Ivson.
Segundo ele, a Bienal arcou com os custos da montagem do que será exposto pelo grupo (R$ 20 mil) e não houve cachê. A curadoria não comenta valores, mas afirma que pichadores receberam as mesmas condições dos outros artistas. Informa ainda que não haverá esquema especial de segurança por conta da presença de pichadores.
Elite do "pixo"
Famoso no circuito do "pixo" pelos serviços prestados entre os anos de 1996 e 2004, quando esteve no auge (literalmente) dos rabiscos em prédios de São Paulo, Ivson se define como "general" do movimento. Hoje, seu empenho é de militante.
"Estou me dedicando mais a divulgar a pichação em outras esferas. Por tudo que já fiz, para mim [a pichação comum] já deu, já tá bom. O que eu quero agora é revolução", diz.
Ivson ganha a vida como ajudante de pintor de prédios residenciais e é pai de duas crianças. "Minha carteira de trabalho é limpa, nunca fui registrado." No ano passado, viajou para a França a convite da Fundação Cartier, um pretigioso centro de arte ao sul de Paris. O cachê? Três mil euros para uma mostra retrospectiva sobre arte de rua. Atualmente, ele estuda a sondagem de uma galeria para vender as "tags" em Berlim, em uma viagem prevista para outubro.
Nas conversas com a reportagem, nos pontos de encontro da pichação em Osasco (Grande SP) e no Paissandu (centro), as entrevistas precisaram ser interrompidas mais de dez vezes. Ivson era saudado por colegas a todo instante, alguns deles dispostos a servir cerveja "na faixa" para o pichador e para a Folha.
As interrupções eram seguidas de recados como "O Djan representa!", enquanto Ivson descrevia quem chegava ("Esse moleque é pichador, quer dizer, ele tem feito mais furto que 'pixo', né..." ou "O monstrão aqui tá arregaçando os prédios lá do centro, sem massagem"). Em certo momento da entrevista, quando um grupo conversava em voz alta ao lado da reportagem, Ivson interveio: "Dá pra falar mais baixo aí? A gente tá gravando!" Silêncio imediato.
"Não sou líder. O líder intelectual é o Rafael [Augustaitiz]", diz, referindo-se ao ex-bolsista de artes visuais do Centro Universitário Belas Artes que apresentou como trabalho de conclusão de curso um ataque de "pixo" à instituição de ensino, em 2008.
O ato na Belas Artes rendeu a Augustaitiz uma visita ao 36º Distrito Policial, no Paraíso, e notoriedade como "Rafael Pixobomb". O "bomb" é um meio-caminho entre a pichação e o grafite. Em vez de traços pontudos e finos, a assinatura sai em letras mais arredondadas e ilustradas.
"Abandonei o [apelido] Pixobomb", conta Rafael. Agora, ele usa a assinatura "Opus666", e risca prédios com letras de "pixo". "Eu só somo no movimento, não tenho nenhuma pretensão de liderar. Eu gosto do barato, gosto de rabiscar mesmo", diz.
No começo de sua trajetória no "pixo", frequentadores dos "points" o achavam excêntrico. "O Rafael é um gênio, um profeta dos nossos tempos. Às vezes eu preciso traduzir o que ele diz até para a mãe dele", diz Ivson.
Augustaitiz evita entrevistas presenciais o quanto pode. Prefere mandar "salves" por e-mail do pequeno apartamento onde mora numa Cohab do Jardim Maria Cristina, em Barueri. Quando a reportagem pediu para que escrevesse alguma coisa sobre sua participação na Bienal, redigiu: "O bom da Bienal 'internacional' é a concentração da nata de adorno-charlatões, arquitetada curatorialmente para assim podermos doutorar."
Foi Rafael quem propôs a ruptura entre pichação e a "street art" em geral. A avaliação dos pichadores era que o grafite estava sendo usado como antídoto do "pixo" --ou seja, ao pagar por um mural com grafites, os comerciantes afastavam os "garranchos". "A galera acha que a gente é Pokémon: nasce pichador e evolui para grafiteiro", diz Ivson.
Performances
Dessa ruptura saíram os "atravessos" à galeria Choque Cultural e ao painéis de grafiteiros (entre eles, o mais famoso da cidade, com traços d'OsGêmeos e bancado pela Associação Comercial de São Paulo no valor de R$ 200 mil). Aos poucos, as performances com cunho politizado e alvos grandiosos ganharam mais atenção do que a corriqueira disputa por espaços na cidade, até então razão de ser da pichação paulistana. Chegou-se inclusive a planejar um ataque de tinta e spray à Prefeitura de São Paulo, abortado em cima da hora por falta de quorum.
"É muito mais pacífico o cara sair com a tinta pra contestar do que pichar só por ego, só para dizer que é melhor do que o outro pichador. Isso ficou para trás", diz Ivson.
Todos os ataques e performances dos pichadores são registrados pelo convidado mais jovem do coletivo, o fotógrafo Adriano Choque. Apesar da relação estreita com o movimento, Choque pede para não ser denominado como pichador ou "fotógrafo de pichadores". Ele admite vir de "um universo oposto" ao dos rapazes que saem das periferias para se debruçar nos parapeitos da capital.
"Não gosto deste rótulo", afirma. "Não compartilho de todos os pontos de vista dos pichadores."
Choque já expôs em Miami e na Cidade do México e suas fotos estão na edição de agosto da revista "Piauí". Em 2011, planeja levar os registros para a Europa. Os colegas dizem que o fotógrafo tem um histórico de pichação pela cidade. Ele nega.
"Nunca fui pichador. Desconheço o motivo do Djan ter afirmado isto", diz. Questionado se já vendeu alguma foto de pichação, responde, sem revelar o preço: "Eu estou expondo, não estou?"
Por enquanto, seus retratos das ações são o material mais "lógico" para comercialização do "pixo" (ou de suas representações). Mas não os únicos. Há planos, por parte dos pichadores, de viabilizar também as folhinhas assinadas no mercado de arte. O preço?
"Estamos tirando uma base pelo que a gente se arrisca, é o preço do nosso seguro de vida. A gente nunca pensou nessa possibilidade de vender a assinatura e agora que tá surgindo não vamos facilitar", diz Ivson, para logo em seguida dizer que cada "tag" --folha tamanho A4 com a "assinatura" do pichador-- valeria R$ 1 milhão.
A reportagem argumenta ser um valor fora de cogitação para estreantes.
"Quer um chute menor do que R$ 1 milhão? R$ 500 mil, no mínimo. A [artista] Beatriz Milhazes vendeu um crochezinho dela por R$ 1 milhão [o nome da tela é "O Mágico"]. A gente quer um milhão também, pô! Vamos ter advogado bom, vamos até tirar nossos manos da cadeia", diz, rindo.
"Acho que o mercado de arte é capaz de absorver muitas coisas. Do mesmo jeito que absorveu o grafite e absorveu, décadas atrás, materiais da arte contemporânea", avalia o curador Moacir Dos Anjos.
Para Márcia Tiburi, o que acontece nas galerias "é mera estética", e a adesão de pichadores ao mercado traz a possibilidade de "perda da revolta". "Isto não quer dizer que a garotada, os artistas, não possam exercitar a contradição --entre a rua e a galeria", explica. De qualquer forma, prossegue, "não acho que o 'pixo' ganhe com a Bienal, acho que como ação radical ele perde; mas, se os pichadores ganharem [dinheiro], quem vai poder dizer algo?"
Anarquizando no Iguatemi
Mesmo sem participar da elaboração da exposição em si, Caroline Pivetta, 25, personagem principal da "Bienal do Vazio", teve contato com curadoria e artistas da 29ª edição do evento. Seu encontro, aliás, foi marcante e ilustra bem como se dá a relação entre os pichadores e a instituição.
No meio deste ano, os curadores Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos promoveram um banquete de luxo para 300 pessoas no shopping Iguatemi (zona sul). Na lista de convidados estavam artistas e curadores estrangeiros, o presidente da Fundação Bienal, Heitor Martins, e os pichadores, que insistiram em levar Caroline.
A organização serviu os presentes com vinho Montes Alpha Cabernet Sauvignon e espumante Chandon, num jantar elaborado pelo banqueteiro Toninho Mariutti e descrito pelos presentes como algo entre o tenso e o desconfortável.
"Nossa presença estava incomodando na festa, isso ficou claro para nós. A gente lá, conversando com os curadores, e a Carol quebrando copo, xingando geral. No final, ela saiu bêbada, desmaiada. Anarquizou total", relata Ivson.
Questionado sobre a noite, Dos Anjos diz ser "evidente um certo desconforto". "Primeiro, por conta de toda a situação da última Bienal e, depois, porque são mesmo dois mundos à parte."
"Não lembro direito o que aconteceu, só lembro de chegar no coquetel e, depois, de o Rafael me carregar no colo na saída", relata Caroline.
É difícil achar algum artista disposto a entrar na linha de fogo de jovens da periferia com discurso agressivo, disposição declarada de "atropelar" obras alheias e que, de uma Bienal para outra, foram alçados da penitenciária à última novidade do circuito das artes.
"A maioria dos caras que estão lá dentro [da Bienal], a maioria do trabalho deles é conversa para boi dormir", dispara Ivson. Para justificar sua afirmação, cita a instalação de Nuno Ramos com urubus, "Bandeira Branca" ("Quem é ele para querer abordar o 'lado sombrio' do Brasil? Com que propriedade ele fala disso, sendo que ele é um burguês formado em faculdade?").
Procurado pela reportagem, Nuno pondera: "Prefiro quem não gosta [do meu trabalho] a quem é neutro".
Acima desse estranhamento entre artistas e pichadores, paira um medo não declarado de um novo ataque. O caso é que ninguém --nem pichadores, nem curadoria, nem artistas-- parece saber o que vai acontecer de fato na abertura desta Bienal e, se acontecer, que papel cada um deve desempenhar.
"Sinceramente? Pode ser que sim, pode ser que não. Pode ser que o pessoal cole, pode ser que ninguém vá. Tem uns caras ali do 'point' do centro que, dependendo do dia, ficam 'virado no capeta'. E tem dias que estão tudo de boa. Eu já fiz aquilo lá [ataque à Bienal], não teria muita lógica para mim", afirma Augustaitiz.
Entre os pichadores, a presença mais aguardada é a de Caroline, que está morando na região metropolitana de Porto Alegre. Mesmo depois de presa e condenada em primeira instância, ela mantém na internet uma espécie de diário da pichação (fotolog.com.br/carolsustos/), frequentado por dezenas de admiradores.
Seu advogado tem divulgado que ela não virá --o que não é confirmado pela própria. "Estamos vendo passagem para a próxima segunda-feira", diz Caroline. "Se eu não tivesse minha filha, talvez chutasse o balde novamente [na Bienal]", afirma.
Além de evitar um novo entrevero como o de 2008, a pichadora perdeu o pai de sua filha há pouco tempo. Conhecido como "Guigo", o integrante do grupo "Néticos" conheceu o preço mais alto do "pixo": aos 22 anos, despencou do oitavo andar quando tentava deixar sua marca em um prédio residencial na av. Rebouças.