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setembro 27, 2010
"Uma grande obra é política em si" por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada da Folha de S. Paulo em 25 de setembro de 2010
Na Bienal, Cildo Meireles, Nuno Ramos, Paulo Bruscky, Joseph Kosuth e Zé Celso defendem obras mais sutis
Obras desses artistas não ignoram críticas a figuras e estruturas de poder, mas trilham rotas mais simbólicas
É impossível ver a distância, mas a paisagem idílica num cilindro gigantesco, obra de Cildo Meireles na Bienal, gira movida por homens de verdade num engenho às avessas debaixo dela.
Meireles passa longe da campanha política para revelar e ao mesmo tempo esconder as engrenagens do poder e da construção da imagem.
Não é território estranho para quem já circulou mensagens contra a ditadura em cédulas de dinheiro e garrafas de Coca-Cola nos anos 60.
"Arte política não pode ser imediatista, o trabalho tem que estar inserido na história da arte", resume Meireles. "Não adianta fazer denúncia de pernas curtas, que não sobrevive às circunstâncias."
Pernas curtas, no caso, teriam a pseudocampanha de Roberto Jacoby a favor de Dilma Rousseff, ou mesmo os assassinatos do papa, Lula e George Bush por Gil Vicente.
Sem violência, Paulo Bruscky parou o trânsito numa ponte em Recife durante a ditadura, amarrando uma fita vermelha de ponta e ponta. Está na Bienal um filme das pessoas que param, olham e decidem passar por baixo ou por cima da linha.
"Eram obras que expunham o clima de uma época", lembra Bruscky. "Trabalhei até com termômetros, mostrando o clima político como poesia e como tensão."
Nessa tensão, o artista foi preso duas vezes nos anos 70 e diz ter sido ameaçado de morte pelo regime militar. "Passei seis meses com medo de ser morto", conta. "Diziam que eu seria assassinado, ou melhor, acidentado."
MÍSSIL DO DISCURSO
Nos Estados Unidos, o artista Joseph Kosuth enfrentou ameaças de outra ordem. Pioneiro da arte conceitual, ele está na Bienal com quatro painéis que reproduzem as definições de "norte", "sul", "leste" e "oeste", pontos cardeais de uma ação estética e ao mesmo tempo política.
Quando decidiu ser mais explícito, fez, nas eleições de 1992, uma obra a favor de Bill Clinton e contra George Bush. Foi seu primeiro e último trabalho panfletário. Chegou a ser ameaçado de censura pelo museu, que era público, mas a instalação ficou lá até a vitória de Clinton.
"É perigoso afirmar uma mensagem, uma ordem", diz Kosuth à Folha. "O problema da arte política é que ela tem o mesmo conservadorismo que a publicidade, reduz tudo a um momento, e arte é importante demais para ser só o míssil de um discurso."
Fugindo desse míssil, Kosuth depois seguiu um caminho também explícito, mas do ponto de vista semântico.
Amplia as definições de palavras do dicionário ou prega citações de filósofos ou líderes totalitários ao lado de obras de outros artistas em museu. Está lá um discurso seu e ao mesmo tempo anônimo, que deixa as associações a cargo do espectador.
"Política está ligada ao poder humano de interferência nas estruturas", resume José Celso Martinez Corrêa, que encena amanhã, na Bienal, a peça "Bailado do Deus Morto", de Flávio de Carvalho.
"Uma grande obra de arte é política em si", afirma. "A rampa da Bienal é política."