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setembro 20, 2010
Artista Francis Alys encontra paz no olho do furacão por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 20 de Setembro de 2010.
O belga radicado no México mostra na Bienal de São Paulo um filme com oito anos de caça às tempestades
Ele compara a violência dos redemoinhos às convulsões políticas do país e lança livro com os bastidores de sua obra
No olho de um furacão, Francis Alys encontrou a graça e a paz de uma igreja. "Entrar não é difícil", conta o artista, que passou os últimos oito anos indo atrás de redemoinhos de pó. "Tem uma corrente de vento e areia muito agressiva em volta, mas, lá no meio, é calmo, monocromático, até sublime."
Ele trocou a Bélgica natal pelo México e a arquitetura pela arte. Do outro lado do oceano, empurrou um bloco de gelo pelas ruas ardentes da capital mexicana, fez um Fusca decrépito subir uma montanha e filmou umas 30 horas de furacões em rodopio pela paisagem agreste.
De certa forma, sua obra balança entre sensações de otimismo e derrota, esforços inúteis em busca de incertezas muito ou pouco plásticas.
Silêncio Sublime
"Não sei se procuro beleza, graça ou redenção", afirma Alys, que mostra seu filme dos furacões na Bienal de São Paulo. "Só acredito que, nesse caso, houve uma busca por um silêncio sublime, por ordem e paz num lugar estranho, como se experimentasse o que é estar à beira da ruína, de um colapso interno."
Na edição da Bienal que começa no próximo sábado, com a intenção de mostrar arte surgida à luz da política, Alys parece estar mais uma vez no centro de um furacão.
Não é panfletária sua obra, nem denuncia algo com clareza, mas trata desse estado latente, de uma ordem primeva sob uma grossa camada de caos na superfície.
Qualquer semelhança com a história de uma região que atravessou ditaduras, moratórias e outros terremotos não é coincidência nesse seu desfile de tempestades.
"Foram oito anos de trabalho e, nesse tempo, a situação política mudou muito, acabou distorcendo o filme", afirma Alys.
"Alguns viram isso como experimento cinematográfico, mas sei que é uma resposta ao lugar onde vivo."
Nesse lugar, um partido que passou mais de 70 anos no poder foi substituído por outro, não sem traumas, no início desta década. Há quatro anos, o vencedor das eleições teve a vitória contestada pela oposição, instaurando uma situação de incerteza que ainda causa seus abalos.
"Foi um momento caótico na história do país [o México], e eu estava viciado em caçar furacões", lembra Alys. "Via a emergência da ordem numa situação de desordem, o colapso do Estado está presente, você sente isso quando está no olho de um furacão", afirma.
Preconceito
Sente, mas não vê. Do lado de dentro, Alys explora uma paisagem homogênea, um denso monocromo marrom dotado de paz enganosa. "É tudo dessa cor", diz apontando para uma fotografia do furacão. "É como estar dentro de uma grande escultura."
Mas Alys, que diz "iludir o espectador para desmentir seus preconceitos", buscando um equilíbrio entre poesia e militância, também quis mostrar o que estava por trás das formas desse furacão.
No livro "Numa Dada Situação", que lança hoje em São Paulo, pela Cosac Naify, mostra os desenhos, estudos e recortes de jornal que fez nas noites depois de editar o filme que está na Bienal, como uma espécie de estrutura secreta do trabalho.
"Editar a obra foi uma sensação visceral, não havia plano", lembra o artista. "Precisava de coisas que me ajudassem a pensar, palavras e conceitos que não explicam a obra, mas traduzem os bastidores de todo esse processo."
Equilíbrio Frágil
Nas páginas do livro, desenhos abstratos contrastam ideias de "governo" e "desgoverno", mapeiam áreas chamadas "caos", "controle", "abandono", "tumulto".
Isso porque foi ali que encontrou paz na urgência de dizer as coisas. "Tudo parece ser um pequeno milagre, é um milagre que o trânsito flua, que um regime fique no poder", diz. "É um equilíbrio muito frágil que funciona."