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setembro 1, 2010
"Violência já não inspira", diz Rio Branco Bernardo Carvalho, Folha de S. Paulo
Matéria por Bernardo Carvalho originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de São Paulo em 01 de setembro de 2010
Sem fotografar desde 2008 e se dizendo em fase mais espiritual, artista ganha mostra que enfoca mal urbano
Além da exposição no MIS, fotógrafo também apresentará vídeo na Bienal de São Paulo e em Inhotim (MG)
Miguel Rio Branco está construindo um labirinto na casa onde mora há dois anos e meio, em Araras (RJ). "É um labirinto de árvores", esclarece o artista e fotógrafo, conhecido pelo universo urbano, sujo e visceral de suas imagens.
"Não fotografo natureza, não sou um paisagista, estou experimentando, plantando um labirinto", diz, entre as mais de 40 imagens que, captadas desde 1970, retratam detritos urbanos, periferias, prostitutas e marginalizados e constituem, com mais dois vídeos e uma instalação, a exposição "Maldicidades -Marco Zero", aberta ao público a partir de hoje no Museu da Imagem e do Som.
Numa das fotografias, um homem numa favela de Lima, no Peru, segura um jornal em que se lê a manchete: "Murió el Cuerpo" (o corpo morreu). O trabalho de Rio Branco sempre privilegiou a carne, o sangue e as vísceras como o lugar da verdade, fosse entre prostitutas, boxeadores ou mendigos, a ponto de a própria câmera dar a impressão de ser feita da mesma matéria viscosa do mundo observado pela membrana orgânica da lente. "Há seguramente alguma coisa de verdade no corpo, se não a gente não estaria aqui conversando", diz. A foto foi feita para uma reportagem sobre economia informal para a revista alemã "Stern". "Fiz pouco fotojornalismo. Estava sempre do outro lado, onde não acontecia nada." Quando viveu em Paris, de 82 a 83, como membro da agência Magnum, diziam que ele devia fotografar Beirute. "Tinha um francês que vivia em Ruanda. Nunca entendi por que fotografava tanto cadáver. Depois, expôs as fotos, como arte."
MATÉRIA EMPOBRECIDA
A manchete do jornal peruano poderia servir também de marca simbólica para um novo ciclo na obra do artista, em que a verdade do corpo passa a ser projetada na natureza. Rio Branco não fotografa desde 2008, quando fez uma exposição em Tóquio.
"Eu me identificava mais com a marginalidade. Tudo ficou violento demais. Passei de uma fase mais ligada à carne para uma coisa talvez mais espiritual. Tem a ver com o que eu vejo. Há um empobrecimento da matéria.
E uma questão ligada só ao dinheiro. Um excesso, um consumo desenfreado, o último grito do capitalismo." Não é por acaso que o vídeo "Nada Levarei Quando Morrer Aqueles que Mim Deve Cobrarei no Inferno", realizado em 1979 com as prostitutas do Pelourinho, em Salvador, tenha sido selecionado para a 29ª Bienal de São Paulo, que abre neste mês com o tema arte e política.
"Não sei se isso que está aí não vai abrir para outra coisa, porque essa porcaria vai toda para o espaço. Ninguém vai conseguir consumir continuamente, sem ter noção de por que está consumindo. As pessoas estão sendo forçadas a consumir, é uma situação fascista. A partir do momento em que a arte vira produto, ela tem que ser chamada de outra coisa, já não pode ser chamada arte", diz. Nesse sentido, o tema põe a própria Bienal em questão. Resta saber até onde.
FERRARIS
Na primeira noite de sua visita a São Paulo (onde, em 1980, ele perdeu quase todo o seu arquivo fotográfico num incêndio) para a montagem da exposição no MIS, Rio Branco entrou em pânico com o barulho das ferraris na madrugada diante do hotel.
"A ideia da exposição vem da atração do mal nesse espaço urbano gigantesco, mas a violência já não me inspira. Prefiro trabalhar com a natureza. Sempre tive vontade de fazer um trabalho duro sobre São Paulo, mas acabo querendo sair fora antes." Nascido em 1946, filho de diplomata, bisneto do barão do Rio Branco e neto do caricaturista J. Carlos, o fotógrafo teve uma formação errática.
"A essência da fotografia veio de revistas que eu via na casa dos meus pais, tipo "Elle" ou "Playboy". Houve também um livro que me marcou muito, com as primeiras fotos que os aliados fizeram dos campos de concentração. Havia essa dualidade entre vida e morte. Sempre houve essa ambiguidade entre o bem e o mal no meu trabalho. As mulheres do Pelourinho estão lá cheias de cicatrizes, posando como se fossem modelos."
Além da Bienal, o vídeo do Pelourinho integra também o pavilhão dedicado ao artista, a ser inaugurado no Centro Inhotim de Arte Contemporânea (MG). O próprio colecionador e idealizador do centro, Bernardo Paes, deu a ideia do labirinto ao fotógrafo. Em Araras, Rio Branco estava tentando esconder o vizinho atrás de uma cerca viva. "Foi me dando uma certa experiência. Acabei fazendo um projeto de labirinto de dois andares. Mas não vai a Inhotim, não. Um labirinto por encomenda não é mais um labirinto."