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agosto 31, 2010
‘Fazer arte é se interessar por tudo’ por Suzana Velasco, O Globo
Matéria por Suzana Velasco originalmente publicada no Segundo Caderno do O Globo em 28 de Agosto de 2010
Dono de uma obra inconfundível, que o transformou num dos mais importantes e singulares nomes da arte brasileira, Tunga leva trabalho monumental à Bahia
TUNGA e parte da obra “À luz de dois mundos”, que já passou pelo Louvre e pelo P.S.1, em Nova York, e está exposta a partir de hoje em Salvador uma viagem a Bangcoc, na Tailândia, Tunga foi parar num mercado de amuletos bizarros, como lagartixas trançadas e excrementos petrificados, entre outras bugigangas que deram um susto no artista plástico: Parecia que eu tinha ressuscitado ali.
Tunga viu ali parte do repertório de objetos míticos que desde os anos 70 compõe a sua obra, criada a partir de elementos que se contaminam e se alimentam: tranças, ímãs, serpentes, rãs, pentes, bengalas, ossos, crânios, redes e cálices repletos de gel, líquidos e substâncias que remetem a fluidos corporais. Com essa extrema presença física dos materiais, o artista criou uma obra que, hoje aclamada internacionalmente, trata de questões transcendentais.
A busca do anímico é uma forma segura de se falar de poesia e arte — afirma Tunga, aos 58 anos. — A arte que me interessa é a que articula os sentidos que não são passíveis de serem revelados por uma mediação crítica. O momento de calar é o momento em que a poesia fala.
Apesar de ressaltar o indizível de sua obra, Tunga fala sem pudor sobre ela, com sua multiplicidade de discursos. Em algumas horas, no intervalo da montagem da exposição “À luz de dois mundos”, em Salvador, ele fala sobre Winnicott, Tristan Tzara, Newton, Santo Agostinho, San Juan de la Cruz, Freud. Sobre psicanálise, filosofia, História da arte, religião, literatura, arqueologia, antropologia, erotismo:
Fazer arte é se interessar por tudo. O artista é uma espécie de clínico geral que lança mão dos seus especialistas quando necessário. Na hora de criar, me coloco na posição de sujeito múltiplo, como se dispersasse uma identidade. O que temo da postura da arte contemporânea é a presença excessiva de especialistas, que cria categorias empobrecedoras.
O interesse infindável se materializou numa obra inconfundível — sempre se vê Tunga numa obra de Tunga —, com a qual o pernambucano radicado no Rio se tornou um dos mais importantes e singulares nomes da arte brasileira. Tunga foi o primeiro artista contemporâneo a expor no Museu do Louvre, em Paris, onde cerca de quatro milhões de pessoas viram a monumental “À luz de dois mundos” sob a pirâmide do museu. A obra também já foi montada no P.S.1, centro de arte contemporânea do MoMA, em Nova York, e, inédita no Brasil, desde hoje está exposta no Palacete das Artes Rodin Bahia, em Salvador, no programa de escultura contemporânea Quarta Dimensão.
Ali, Tunga dispôs uma balança que equilibra, de um lado, um grupo de crânios, e, do outro, cabeças de esculturas (réplicas de peças do Louvre) presas por tipitis — cilindros usado pelos índios para espremer mandioca. Entre os dois mundos, um esqueleto negro sem cabeça deita numa rede. A obra ainda carrega objetos típicos do vocabulário de Tunga, como tranças e uma bengala e um pente gigantescos.
Na arte contemporânea, o Tunga é aquele que consegue dar força poética, materializar visualmente com muita força conceitos muito abstratos, questões filosóficas. Ele usa elementos imediatamente comunicativos e consegue criar uma escala espetacular sem espetacularizar a obra — diz o crítico de arte Paulo Sergio Duarte, que montou uma apresentação com imagens da produção e da exposição de “À luz de dois mundos”, exibida agora em Salvador.
Amigo do artista, Paulo Sergio acompanha sua obra desde o início, quando, como diz Tunga, não havia curadores como “chefes de orquestra”, muito menos galerias para representar os artistas.
Para os jovens artistas de hoje, é muito difícil pensar que não tínhamos galerias. E o tipo de arte que a gente fazia era muito difícil para aquela época. Para mover um castiçal, você tinha que empurrar a mesa toda junto — diz Tunga, que se formou em Arquitetura e trabalhou em escritórios. — Eu era de uma geração de classe média que não acreditava que arte era um meio de subsistência. Meu equívoco foi acreditar que podia fazer arquitetura em arquitetura.
Confirmando ser um materializador de conceitos, Tunga diz que continua fazendo arquitetura em suas esculturas, e logo consolidou um universo fantástico, de fábulas e mitos por vezes fantasmagóricos, que desestabilizam a normalidade. Às vezes, a escultura se expande para a performance, como em “Xifópagas capilares entre nós”, criada a partir da lenda inventada por Tunga de duas gêmeas presas pelos cabelos, que são decapitadas porque não querem se separar:
Chego à performance quando o pensamento parece pedir uma explicitação real. Ela contamina as coisas de atributos diversos. É o próprio princípio da alquimia, de transformação real do mundo.
Outras vezes, as fábulas pensadas pelo artista se transformam em filmes e vídeos — como ocorreu com “Xifópagas...” —, sempre com um caráter onírico, nunca de documentário ou videoarte.
Ele tem um universo original, reflexivo, que dispara um imaginário conceitual — diz o artista Arthur Omar, que fez com Tunga o vídeo “Nervo de prata”, em 1987.
Em performances ou vídeos, as obras de Tunga têm um sentido colaborativo e agregador, de contaminação entre estéticas e gerações, em que ele põe na prática a ideia de que “fazer arte é se interessar por tudo”. O cineasta Eryk Rocha, que ia à casa de Tunga quando criança, levado pela mãe, Paula Gaitán, certa vez recebeu um telefonema do artista pedindo que ele filmasse uma ideia sua. Assim, em 2004, surgiu o filme “Quimera”, que foi exibido em Cannes e em outros festivais pelo mundo, e era chamado por Tunga e Eryk de “sonhometragem”.
Quando ele me convidou, fiquei perplexo. Disse: “Não sei fazer isso, não tem nada a ver com o meu universo.” Estava fazendo filmes políticos. Ele me desafiou a fazer algo diferente de mim — diz Eryk, de 32 anos. — O Tunga sempre me deixou muito à vontade, nunca existiu um peso por ele ser um artista consagrado, ou por a gente ser de gerações tão diferentes. Os jovens têm uma relação sanguínea com ele.
Os dois ainda fizeram o curta “Medula” e o média-metragem “Laminadas almas”, filmado por Eryk na performance de mesmo nome que Tunga fez em 2006, no Jardim Botânico, junto com outros jovens: os artistas gêmeos Thiago e Matheus Rocha Pitta, estudantes de biologia e os bailarinos da companhia de Lia Rodrigues, parceira de performances.
Antes de uma performance no CCBB de São Paulo, fiquei impressionada quando vi o Tunga conversando com uns cem homens, desses que você contrata como figurantes. Ele sabe muito o que quer — conta Lia, que participou da performance de oito horas, que também teve participação de Arnaldo Antunes.
Outro companheiro de performances foi Daniel Rangel — assistente de Tunga entre o fim dos anos 90 e o início dos 2000 —, em seu primeiro trabalho com arte contemporânea. Uma década depois, Rangel é diretor de museus do Instituto do Patrimônio Estadual e Cultural da Bahia, e o responsável por levar “À luz de dois mundos” a Salvador. A exposição ainda reúne peças criadas a partir da escultura principal, como ossos, bengalas e pentes gigantes, desenhos do projeto da obra e vídeos sobre o artista.
Em breve, Tunga lançará o curta-metragem “Cooking” (“Cozinhando”), que integrará a versão brasileira de “Destricted”, filme coletivo de 2006 com episódios pornográficos assinados por artistas plásticos como Marina Abramovic, Matthew Barney e Larry Clark. Ali, ele leva às últimas consequências a corporeidade e a ideia de alquimia de sua obra, numa transformação de fluidos dos corpos dos amantes.
A manifestação da sexualidade e sua relação com o desejo sempre foram temas importantes para mim diz ele, que fez um filme de 15 minutos. — É o suficiente para contar uma história de amor. Não para vivê-la.