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agosto 10, 2010
Arte, ensino e liberdade por Ana Cecília Soares, Diário do Nordeste
Matéria de Ana Cecília Soares originalmente publicada no Caderno 3 do jornal Diário do Nordeste em 10 de agosto de 2010.
Reflexões sobre a formação em artes visuais e as relações entre o capital e a cultura foram questões debatidas nos últimos dias do Seminário Arte, Invenção e Experiências Formativas, no Centro Dragão do Mar
O que se espera de um espaço dedicado ao ensino de arte? Onde começa a formação de um artista? Como construir uma visão crítica quando se está inserido num sistema de ensino engessado? Um balaio de questionamentos se formava à medida que as professoras Cláudia Saldanha, Ana Maria Tavares e Suely Rolnik aninhavam a plateia com suas reflexões, durante os dois últimos dias do Seminário Arte, Invenção e Experiências Formativas, do Núcleo de Formação do Programa Dragão do Mar Educativo, realizado na semana passada.
Com a proposta de apresentar ao público cearense um modelo de ementa em que as práticas artísticas são experimentadas sem restrições, com ênfase em seus aspectos interdisciplinares e transversais, Cláudia Saldanha trouxe à tona o trabalho que a Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), no Rio de Janeiro, vem desenvolvendo ao longo de seus 35 anos. Responsável pela direção do espaço, destacou a importância conquistada pelo lugar como ponto de referência na formação de artistas de todo o País.
"A EAV foi fundada em 1975, em pleno período da ditadura militar. A ousadia já começava aí. Idealizada por Rubens Gerschman, a escola contou com a colaboração de grandes nomes das artes visuais brasileiras: Mário Pedrosa, Lygia Pape, Lina Bo Bardi e Celina Tostes. Ela é uma espécie de Éden da intelectualidade do Brasil, um espaço de troca de ideias, de conversas", ressalta Cláudia.
O espaço funciona na antiga residência, em estilo eclético, projetada pelo arquiteto Mário Vodrel em 1920, sob encomenda do armador brasileiro Henrique Lage, para sua esposa, a cantora lírica italiana Gabriela Besanzoni. O local já abrigou eventos culturais importantes, como a montagem da peça "O Rei da Vela" elaborada por José Celso Martinez Corrêa, uma exposição inédita de fotografias de Mario de Andrade, inúmeros shows musicais, com artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Cazuza, Fagner e Chico César, realizados no projeto "Verão a Mil", organizado por Xico Chaves.
"Em 1967, Glauber Rocha filmou Terra em Transe no Parque Lage, e, em 1968, a piscina ficou nacionalmente famosa, quando Joaquim Pedro de Andrade fez dela o grande caldeirão da cultura brasileira em ´Macunaíma´. O momento era de total efervescência e dois grandes cineastas brasileiros filmavam seus clássicos utilizando o palacete como locação, em plena ditadura militar", destaca.
Atualmente, a EAV oferece cerca de 60 cursos, direcionados não só às artes visuais, apesar de este ser seu foco principal, mas também a música, dança, teatro e literatura. Além do programa para artistas, há outros cursos destinados a historiadores, pesquisadores e demais interessados em aprofundar o conhecimento e o contato com a arte. "A escola não mudou muito... Ela é livre para incorporar em seu projeto as tendências atuais e, assim, vai se reinventando e se reestruturando conforme o ritmo da própria sociedade", conclui.
"Arte é investigação"
A artista plástica e professora da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP), Ana Maria Tavares, também compartilhou suas inquietações, através da palestra "A Formação em Arte: O Artista Investigador e o Fortalecimento do Contexto-Acadêmico: 1970 - 2010".
Para a professora, o artista precisa de liberdade para experimentar suas propostas poéticas, mas as instituições de ensino, em sua maior parte, ainda apresentam uma estrutura curricular fechada ao novo. Ela destacou que a formação em artes deve envolver os museus, as instituições culturais e o público.
"A experiência da arte deve ser expandida, compartilhada e sentida. A arte em estado bruto é uma abstração. É o modo de sentir e de pensar do artista. A arte nasce do território da incerteza", enfatiza. "O próprio museu se coloca em xeque. Parte da tarefa do artista é questionar a instituição, a sua prática e o sistema. O artista é o inventor, o público o campo aberto, e a obra a porta de entrada entre os dois".
Capital e cultura
Para finalizar os cinco dias do seminário, encerrado no último sábado, a pesquisadora e crítica de arte Suely Rolnik teceu uma crítica ao sistema capitalista, que articula as experiências humanas e as manipula de forma a dinamizar o mercado. "O sistema capitalista opera, puxando-nos o tempo inteiro para o consumo de subjetividades ´pret-à-porter´. Isso ocorre na ânsia de nos repaginarmos, nos reinventarmos para lidar com nossas condições de seres angustiados - por não podermos alcançar os modelos projetados a partir dos braços desse mesmo sistema - tal como a mídia faz, por exemplo", explica. Nesse contexto, observa que a própria experimentação se tornou um modelo "prêt-à-porter", expressão que vem do francês "prêt" (pronto), e "à-porter" (para levar), mas que tal fato não significa que chegamos a um esgotamento. Nascem outras questões.