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agosto 2, 2010
Consumidores da cultura ganham com a revisão da lei de direito autoral por Guilherme Varella, Cultura e Mercado
Matéria por Guilherme Varella originalmente publicada no Cultura e Mercado em 16 de julho de 2010
Está em discussão a proposta de revisão da LDA (Lei de Direitos Autorais). Esse debate tem relação direta não só com a proteção do autor, mas também com os direitos do consumidor. Para entender essa relação, primeiramente, é preciso ter clara a noção de consumo na área da cultura.
O consumo não pode ser visto como ato isolado, descolado de todo o ambiente sociocultural que o circunda, apenas como uma relação alienada de troca mercantil. A cultura consumeirista enxerga o consumo como exercício de cidadania. A aquisição de um produto, a opção por um serviço, a escolha de um bem são atos políticos, que abarcam valores e conceitos diversos em cada grupo ou sociedade.
Quando se trata de cultura, de economia da cultura, essa acepção valorativa de consumo torna-se potencializada. O consumo de bens culturais – de livros, filmes, música, espetáculos – é o consumo mais qualificado que existe por ter como objeto aqueles bens cujo componente simbólico é o principal elemento caracterizador. Entre o autor, o artista que cria a obra, e o consumidor, o público que vai consumi-la, há um meio-ambiente cultural, um sistema complexo de referências comportamentais, estéticas, éticas.
Entre esses dois pontos, que devem se ligar para que o consumo de cultura exista, há o patrimônio cultural de toda a sociedade, a que todos devem ter acesso, como cidadãos e como consumidores, por fazerem parte dele. Entre esses dois pontos, autor e sociedade, estão os direitos autorais. No elo delicado e importante da cadeia cultural que liga produção, circulação e consumo dos bens simbólicos.
Hoje, o Brasil possui uma legislação autoral que mais embola do que limpa esse meio-de-campo. Se são os direitos autorais a ponte de acesso entre o artista e o público, essa ponte no Brasil é das mais pedregosas que existe.
Vivemos o tempo da circulação de produtos culturais em plataformas digitais, de tecnologias que demandam novos arranjos produtivos, de modelos de negócios mais criativos, da internet como ambiente catalisado de trocas e da desmaterialização das obras culturais (ou precisamos ainda do CD físico para ouvir uma música?). Nesse novo contexto de consumo, a LDA como vige, rígida, restritiva, fechada, incomunicável com os outros diplomas legais – inclusive com o Código de Defesa do Consumidor – é quase um alienígena.
Na prática, ela mais atrapalha o desenvolvimento dessa nova e rentável economia da cultura do que ajuda. Fato lamentável, se considerarmos ser um setor que representa cerca de 7% do PIB nacional, segundo recente estudo do IPEA, e de ser considerado estratégico a ponto de vários países europeus, em plena crise, como é o caso do Reino Unido, não aceitarem qualquer corte orçamentário na área cultural.
A proposta de revisão da LDA, posta agora em consulta pública pelo Ministério da Cultura, parece atentar para isso. E mais ainda, se volta a questões que obstam práticas comuns e legítimas da sociedade no seu acesso.
Ela criminaliza o jabá, dinâmica que coloca em rádios – concessões públicas, diga-se de passagem – músicas pagas por grandes gravadoras e que retira do consumidor a possibilidade de contato com toda a diversidade musical brasileira; proíbe as restrições tecnológicas que impedem a execução de um CD ou DVD em diversos aparelhos e traz a previsão da interoperabilidade, de maneira que passar conteúdos de uma plataforma para outra (como do CD para o tocador de mp3) não seja mais considerado crime; expande as possibilidades de acesso aos bens para pessoas com deficiência; garante a cópia privada de produtos culturais para fins não-comerciais; e disciplina a licença compulsória, a obrigatoriedade de colocar uma obra em circulação, caso haja um impedimento desmedido por herdeiros titulares de direitos autorais ou nos casos de obras órfãs, de autor desconhecido.
Tudo isso é benéfico ao consumidor. E mais valioso ainda, para ele, é saber o quanto está pagando pelos direitos autorais quando adquire produtos ou serviços culturais. E, desse montante, quanto e de que forma isso chega aos artistas preferidos. A proposta de supervisão pública dos direitos autorais traz transparência às relações comerciais no campo da cultura, e vai obrigar os órgãos que recolhem e repassam os direitos a tornarem públicos os critérios de cobrança, comunicando o consumidor de forma satisfatória sobre eles. Transparência e informação que são princípios básicos de defesa do consumidor.
Nesse sentido, a proposta de revisão da lei de direitos autorais, em geral, é boa para o consumidor. Alguns pontos devem ser revistos, como a implementação de uma taxa para cópias reprográficas (xerox) e a necessidade de regulamentação do compartilhamento de conteúdos na internet. Mas é preciso que se diga que essa proposta contribui para que o direito autoral de fato seja consagrado, o que só ocorre quando o artista encontra o público e quando o consumidor acessa a obra.