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julho 29, 2010
Um patrimônio invisível por Paula Alzugaray e Nina Gazire, Istoé
Matéria de Paula Alzugaray e Nina Gazire originalmente publicada na Istoé em 16 de julho de 2010.
Exclusão de obra de Lygia Clark da 29ª Bienal de São Paulo e proibição o uso do nome da artista em mostra em Fortaleza reacendem polêmica sobre necessidade de regulação de direitos autorais
A arte brasileira nunca esteve tão em alta no contexto internacional. Do jeito que as coisas vão, logo o brasileiro terá que viajar se quiser ver a arte feita em seu país. Especialmente se essa arte for produzida por artistas já falecidos, já que aqueles que detêm os direitos de espólios nem sempre facilitam sua difusão. A retirada da obra “Caminhando”, de Lygia Clark (1920-1988), do conjunto de obras que a partir de 25 de setembro irão integrar a 29ª Bienal de São Paulo, ilustra bem a problemática.
“Lygia Clark para nós é um emblema, é uma inventora”, diz Agnaldo Farias, curador da 29ª Bienal. “Ela inventou algo chamado ‘Caminhando’, que é um exercício democrático, acessível a qualquer pessoa.” A obra é uma fita de Moebius e acontece na medida em que o público recorta o papel. Foi criada em 1963, quando Lygia dizia que a arte não deveria só ser contemplada com olhos, mas traduzida em experiências. Mas um pacote de condições impostas pelos responsáveis por seu espólio – a proibição de que determinados críticos escrevessem sobre sua obra no catálogo, a garantia de que as bobinas de papel seriam repostas exclusivamente por courriers enviados do Rio de Janeiro e a cobrança de R$ 45 mil – levou a curadoria da Bienal a desistir da obra. “Tínhamos o dinheiro, mas decidimos que não poderíamos chegar a esse nível de concessão. Isso era trair a memória da Lygia Clark”, afirma Farias. “O interesse argentário sobrepõe-se a um interesse cultural e familiares estão contribuindo para a desaparição dessas obras. Comenta-se menos Lygia Clark.”
A atual Lei de Direitos Autorais, em vigor desde 1998, prevê que os direitos se estendam à família por 70 anos após a morte do artista. Cabe aos herdeiros o zelo pela integridade física da obra, além de sua difusão. Na falta de uma política cultural de preservação da arte brasileira, a atuação dos familiares torna-se fundamental. “O herdeiro tem o direito de fazer o que quiser com a verba arrecadada através dos direitos autorais. É um direito constitucional. A família de Lygia achou por bem ceder a uma associação cultural que preserva todo o acervo documental da artista para dar acesso a quaisquer pessoas que tenham interesse em sua arte”, afirma Alessandra Clark, neta da artista.
“De fato, o Estado está desmoralizado, os nossos museus não colecionam nada, ou pouquíssimo, e as artes visuais deste país são mantidas invisíveis. Temos que agradecer a essas famílias, e seu direito é legítimo. Mas estamos discutindo os excessos”, continua Farias. A associação O Mundo de Lygia Clark inclui entre suas missões a propagação das ideias da artista. Mas algo deve estar errado, já que sobram relatos de exposições e publicações impedidas de realização, por intervenção da associação. O caso mais drástico e recente envolve a curadora Suely Rolnik, pesquisadora reconhecida internacionalmente como uma das maiores expertises na obra de Lygia. Paradoxalmente, ela é uma das críticas impedidas de escrever sobre a obra de Lygia no catálogo da Bienal.
Suely concebeu um arquivo de 65 entrevistas com pessoas que vivenciaram as sessões com objetos relacionais, na fase em que a artista se voltou para experiências terapêuticas. Com depoimentos de músicos como Caetano Veloso e Jards Macalé, o arquivo ganhou reconhecimento e diversas exposições na Europa. Mas, quando a exposição foi montada no Centro Cultural BNB, em Fortaleza, em maio, Suely recebeu uma notificação de O Mundo de Lygia Clark para a retirada do nome da artista do título da exposição, de textos e catálogos. Para que o nome constasse do material gráfico, a associação cobrava R$ 40 mil.
“Sem consulta prévia, o banco decidiu retirar todos os textos. Meu trabalho foi mutilado e os filmes não têm sequer um frame de imagem de Lygia”, afirma Suely, que apresentará a exposição dos arquivos, em agosto próximo, no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), no Recife. Sem a exclusão do nome, a mostra “Lygia Clark: do Objeto ao Acontecimento” será inaugurada com um simpósio sobre direitos autorais, promovido pelo Ministério da Cultura.
“Estamos propondo uma reforma da Lei de Direitos Autorais para garantir o direito do autor e harmonizá-lo com o direito de acesso por parte da população”, afirma Juca Ferreira, ministro da Cultura. “Essa harmonização no Brasil é complicada, porque os direitos vão para a família do autor e ela pode fazer o que quiser.” Segundo as novas regras, em consulta pública no site do MinC até 30 de julho, passa a ser permitida a reprodução gratuita de obras de artes visuais para fins de publicidade relacionada à exposição pública, sem a necessidade da autorização dos titulares dos direitos das imagens das obras, desde que liberada pelos proprietários dos suportes em que a obra se materializa.
“É muito fácil dizer que se está realizando um projeto em homenagem a um artista”, argumenta Alessandra Clark. “Pensamos que será difícil o governo detectar o que é realmente didático ou tem fins comerciais.” Mas, se a nova lei tivesse instrumentos que facilitassem a percepção de fins educativos, isso certamente teria favorecido a mostra em Fortaleza e a inclusão de Lygia na Bienal de São Paulo. “A Bienal está atingindo 40 mil professores da rede pública, seu efeito multiplicador é enorme. O patrimônio de um país é isto: é absolutamente ridículo que o Brasil continue, nessa altura do campeonato, sendo exportador de petróleo e minério. Temos que exportar nossa inteligência”, diz Farias.
A nova lei será bem-vinda se vier a estimular a produção de conhecimento, gerada em casos como
a parceria entre a editora Cosac Naify e a Fundação Iberê Camargo, que desde 2003 publicou cinco livros que mapeiam a obra do artista gaúcho. “É preciso criar uma indústria cultural forte. O mundo inteiro está interessado em nossa cultura e não podemos cometer o mesmo erro do futebol. Temos os melhores jogadores, mas não temos competência para mantê-los. Se não formos capazes de regulamentar um direito, a produção brasileira se tornará inviável”, afirma o ministro Juca Ferreira.