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julho 20, 2010
Certezas abaladas por Erlon José Paschoal, Cultura e Mercado
Texto de Erlon José Paschoal originalmente publicada na revista blog Cultura e Mercado em 25 de junho de 2010.
Por vezes faz bem reler autores que questionam as estruturas tidas como inabaláveis e perenes, tanto na arte quanto na vida. Como sabemos é intrínseca à criação artística uma certa insubordinação e crítica da ordem vigente. Muitos artistas e filósofos reformularam conceitos, elaboraram ideais utópicos e propuseram novas linguagens para se abordar e compreender a realidade. Entre eles, o teatrólogo francês Antonin Artaud. Sua principal obra “O Teatro e Seu Duplo” pode ser encontrada em qualquer livraria.
Artaud exalta a entrega às forças naturais primitivas, o rompimento das amarras sociais e almeja atingir as dimensões mais profundas do espírito, provocando o encanto e o fascínio. Faz uso de termos abstratos e ambíguos, tais como Guerreiro, Duplo, Peste, Crueldade, colocando no palco não mais temas psicológicos ou sociais, mas míticos e cósmicos.
Suas descrições do teatro ideal são virulentas, poéticas e pulsivamente emotivas, por vezes bombásticas e concludentes. A sua premência de se expressar e a sua rejeição do abuso predominante e excessivo das palavras, leva-o à impossibilidade de compartilhar suas ideias com seus contemporâneos, e ao vazio: “Todo verdadeiro sentimento é na verdade intraduzível. Expressá-lo é traí-lo. Mas traduzi-lo é dissimulá-lo. A expressão verdadeira oculta aquilo que manifesta”. Desse modo, em sua não definição, a linguagem concreta, espacial e física do teatro, “faz surgir a idéia de uma certa poesia no espaço que se confunde com a bruxaria”.
Artaud foi um vate, um visionário, que dialogava com as forças inconscientes e pretendia resgatar o poder primitivo e transformador do teatro. Ao mesmo tempo em que rejeitava as formas teatrais então convencionais, ele almejava revolucionar o convívio social, retomando tradições ocidentais instigadoras e sendo fortemente influenciados pelo teatro oriental.
Recorrendo às imagens presentes nas pinturas de Grünewald, Brueguel, Goya e Bosch, Artaud vislumbra um espetáculo ideal, composto por verdadeiras tentações, capaz de extrair as forças primitivas presentes nos mitos e no inconsciente das massas, denominando-o Teatro da Crueldade. Nele, tal como nos ritos e na magia, o público deve ser levado ao delírio e ao êxtase, vivenciando a totalidade física e espiritual do Ser. Os seus ingredientes básicos são a ruptura, a criação de uma linguagem gestual comunicativa e a primazia da encenação em detrimento do uso estático da palavra.
Em sua busca de um teatro que despertasse os nervos e o coração dos homens, Artaud chega à formulação de uma concepção teatral que insufle miticamente as massas, levando-as a acreditar nos sonhos apresentados no palco – mas como sonhos de fato e não como “decalque da realidade” – estimulando no público a “liberdade mágica do sonho”. Artaud é categórico: “farei aquilo com que sonhei, ou não farei nada”.
É preciso sem dúvida coragem para ler e cultivar autores, cujas ideias abalam nossas certezas e insuflam vida em nossas atitudes e gestos automáticos. Ainda bem que eles existem.