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Como atiçar a brasa

 


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junho 16, 2010

Poética de vida e morte por Fernanda Fatureto, Le Monde Diplomatique

Matéria de Fernanda Fatureto originalmente publicada na seção Cultura do Le Monde Diplomatique em junho de 2010

A exposição “O Funâmbulo e o Escafandrista”, da artista-plástica Laura Erber, em cartaz em SP, faz uma cartografia do Sena e tece a relação do rio com os habitantes de Paris.

O funâmbulo é aquele tipo de equilibrista que, com um pé sobre a corda, sabe que está a um passo do fim. Contrariamente, ao manter as mãos suspensas no ar, assegura-se da materialidade da vida: assim caminha o funâmbulo entre duas possibilidades até o imprevisível final. Oposição entre vida e morte, relação que perpassa a história natural de toda a humanidade, não fossem os artistas a intuírem que entre uma e outra não há antinomias e sim aproximações. Vida e morte se ocupam do saber. Para Guilles Deleuze o saber está próximo do viver, sendo que a vida não se opõe ao saber, pois mesmo as maiores dores dão um estranho saber aos que experimentam1; para outro pensador, Walter Benjamin, o saber está à favor da morte, pois é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida assumem pela primeira vez uma forma transmissível2. Dois pensamentos que buscarão na ficcionalidade a solução do impasse. O Romantismo foi talvez o inaugurador desta nova relação potente, em que o poeta, depois de viver radicalmente, entrega-se ao fim em ato heróico. A morte não era interrupção, mas possibilidade de continnum, potência capaz de manter o artista imortal. O desafio criador era viver a posteriori.

Assim foi com Baudelaire, Walter Benjamin, Gilles Deleuze entre tantos que dedicaram sua existência justamente à tarefa exigente: pensar a vida. Todos se suicidaram. Como se a morte fosse o grito libertador para essa mesma impotente vida, porque mortal. Antonin Artaud, o escritor da crueldade, que defendia a corporeidade da vida advogou a favor de outro suicida sentenciando-lhe a inocência: Van Gogh não havia se matado. Não, ele não era louco. Foi a sociedade que o matou, tirando-lhe sua lucidez por meio do conformismo de costumes das próprias instituições3. Máquinas alienantes. Artaud, ele próprio considerado louco por dizer verdades cruas, vivendo parte de sua vida em hospitais psiquiátricos, escreveu sobre o suicídio. E afirmou: tolero terrivelmente mal a vida.

A artista visual Laura Erber realiza em O funâmbulo e o escafandrista, instalação multimídia composta por videoprojeções e depoimentos em televisões, uma cartografia do rio Sena, seu fluxo e relação com os habitantes – citadinos – de Paris. Ou melhor, do que os impele a romper com a contemplação, relação secundária e estática com o rio, e lançarem-se ao jorro das águas: o pleno ato de suicídio. Nas palavras da artista, todo ano o Sena recebe cerca de 180 corpos na região parisiense. Este dado é acompanhado de perto pela Brigada Fluvial da cidade, em que escafandristas realizam a busca de objetos perdidos no fundo das águas e encontram corpos feitos dejetos abandonados à espera do reencontro com a vida: o encontro final com familiares aguardando pelo reconhecimento do corpo e a possibilidade de vivenciarem o luto.

Laura Erber, em sua exposição, enreda a morte no campo ficcional, apodera-se da performance-morte para tratar de representação. Maurice Blanchot quem nos disse que a obra literária só se realiza quando aquele que ali diz “eu” dá lugar a uma voz vinda de outro lugar, transformando-se em um “ele sem rosto”4. Laura Erber, também poeta, traça essa ambiguidade em que morte e linguagem emergem ante o mesmo rosto. Como o canto das sereias de Ulisses, não mais tentado a tapar os ouvidos e sim disposto a sucumbir ao chamado para o fundo das águas. Um canto de morte para fazer viver a obra. O fim da realidade para chegar enfim à representação. A partir daí se enreda a ideia de que arte se apodera da morte para tecer a ficção. Em um dos vídeos dispostos pela sala, há “exercícios de leitura” para textos de Paul Celan e Ghérasim Luca, ambos poetas encontrados mortos no rio Sena. Celan em 1970 e Luca em 1994. Os vídeos trabalham com a ideia de tecitura da linguagem como trama, enredo. A imagem mostrada do fluxo do Sena é interrompida pela escritura.

Rio e palavra a serviço de uma mesma cena: o teatro da própria vida se fazendo; o devir. O que Laura Erber quer é mostrar a morte como personagem de uma “cidade-rio onde tudo passa e nada se fixa”, como diz o artista plástico Selim Abdullah em outro vídeo-depoimento. Em uma das videoprojeções, surge a menina narradora nos contando a fábula da mulher que “leu um livro tão bonito que morreu”. Mais uma vez Laura Erber nesta trama fragmentada faz ecoar a voz de Walter Benjamin, quando o autor diz que qualquer um possui autoridade ao morrer e a morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade. Narrador e morte, ambos autores de uma história inaudível.

Na contemporaneidade tudo se verte em imagem. Então vemos o simulacro fúnebre, um ideal de morte arquitetado pelo jogo da artista. Surge o fetiche. O que leva tantos parisienses a se entregarem ao leito do Sena todos os anos? Rio é recordação. Seria a vontade de resgatar a memória da infância, pois ela guarda segredos compartilhados em águas profundas. Em vídeo, Selim Abdullah fala do senso de pertencimento à água para alguns artistas. Höldeling, Matisse. Paul Celan que, alguns anos antes de se jogar no Sena, escreveu: eu estou no mundo por intermitência. Quando o fluxo se interrompe, a vida mesmo em seus rastros constitutivos de mémoria está impossibilitada de ser representada outra vez. Por isso, o narrador em Benjamin está preparado para este encontro com o fim. Toda escritura é um porvir ainda inaudito. A linguagem tenta reconstituir este vazio. E a morte é seu encontro.

Posted by Fábio Tremonte at 3:07 PM