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junho 14, 2010
Duas artistas em fogo cruzado por Paula Alzugaray, Istoé
Matéria de Paula Alzugaray originalmente publicada na Istoé em 03 de junho de 2010
A brasileira Dora Longo Bahia e a paquistanesa Farida Batool falam sobre o tema da violência em sua arte
Dora Longo Bahia
Não é a guerra particular do morro carioca que povoa as imagens da exposição “Trash Metal”, de Dora Longo Bahia – na galeria Vermelho, em São Paulo, até sábado 12 –, mas cenas de conflitos distantes do Brasil: no Iraque, Afeganistão, Paquistão e Israel.
A artista argumenta que a violência da guerra nos é mais íntima do que parece, mesmo que entre na vida dos brasileiros pelos games ou pela televisão.
ISTOÉ – Você já trabalhou com duas dimensões de violência, vistas pelo filtro da mídia: a violência doméstica e a violência de guerra. Que relação há entre elas?
Dora Longo Bahia – Quando eu trabalhava com violência doméstica, pegava fotos e textos do “Notícias Populares” (jornal do Grupo Folha que circulou até 2001 e explorava manchetes de sexo e violência) sobre mulheres espancadas e pensava no limite entre uma relação íntima e uma notícia em coluna policial. Mas eu não queria falar de um drama pessoal. Mais do que sobre uma pessoa específica, eu queria falar sobre a questão do limite, dar ao conflito doméstico uma dimensão universal. Agora, na série da guerra, pela agressividade do suporte – o ferro-velho que é enferrujado, pesado, corta o dedo –, eu procuro trazer a violência para perto, fazer com que as pessoas se sintam fisicamente próximas ao conflito.
ISTOÉ – Você não trata esses conflitos como regionais, mas universais?
Dora – Exatamente. Senão, entramos em temas nacionalistas. Não dá para pensar que um problema só pode ser abordado por quem vive esse problema: que só um negro pode falar sobre racismo.
ISTOÉ – Por que você opta sempre pela apropriação de imagens da mídia?
Dora – Tudo é mediado, vivemos uma vida mediada. É claro que, se você vai para um campo de batalha ou se passa por uma grande tragédia, você tem um vislumbre do real. Senão, está imerso num mundo da imagem, da ficção. A nossa realidade é totalmente fictícia. Tudo se dirige a conduzir o comportamento das pessoas: as risadas de um sitcom fazem ver aquilo como uma comédia e, quando abre o jornal, você é induzido a ver heroísmo em imagens de guerra.
ISTOÉ – A técnica que você escolhe, o “escalpo”, também é sugestiva da violência?
Dora – O escalpo é uma pintura sem corpo, que é arrancada de seu corpo original e colocada sobre outro corpo. Geralmente esse outro corpo sobre o qual eu trabalho é podre, precário: é o jornal, o papelão, são madeiras de tapume, placas de fibrocimento, que são supertóxicas. Agora estou aplicando a pintura sobre o ferro-velho. Originalmente, o escalpo vem dos índios americanos, os moicanos. Eles arrancavam o couro cabeludo do inimigo como troféu.
Farida Batool
As tensas relações entre o Paquistão e a Índia são uma constante nos trabalhos de Farida Batool, artista paquistanesa que esteve no Brasil em maio para o 5º Seminário Antídoto, no Itaú Cultural, em debate sobre a produção cultural em zonas de conflito. Sua imagem mais famosa mescla as fotografias de uma menina pulando corda e um prédio destruído por um atentado terrorista em Lahore, em 2006.
ISTOÉ – Além de artista, você leciona em zonas de conflito. Como é a relação entre a arte e as realidades políticas da Índia e do Paquistão?
Farida Batool – Trabalho com refugiados que vivem em abrigos, pessoas que foram deslocadas violentamente de suas realidades cotidianas. Utilizo a arte como uma forma de enfrentamento. Essas pessoas precisam expressar seus sentimentos em relação às terríveis situações vividas, e não de uma imposição ao esquecimento do trauma. Utilizo a arte como forma de linguagem, mesmo que as pessoas não tenham um entendimento do termo arte. É algo catártico. Além disso, realizo um trabalho de documentação das zonas de conflito do Paquistão. Meu objetivo é dar espaço a diferentes vozes e constituir uma experiência estético-política.
ISTOÉ – Você realizou trabalhos com mulheres de áreas rurais e desenvolveu o minidocumentário “The Clash of Masculinities” para a BBC online. Por que a questão do gênero?
Farida – Somente uma mulher levanta questões sobre essas diferenças que lhe dizem respeito. Os homens paquistaneses passam por essa crise da masculinidade que tem muito a ver com as questões colocadas pelo feminismo. No Paquistão, a dificuldade de liberdade pesa muito mais sobre as mulheres. Às vezes, sinto inveja dos homens, inveja de coisas básicas, como poder andar na rua ou sentar em um parque sozinha. Ao mesmo tempo, os homens do Paquistão têm um problema muito pior do que o meu, que é ter de administrar esse ideal massacrante de uma masculinidade perfeita.
ISTOÉ – Por que a escolha pela técnica da impressão lenticular?
Farida – É o meio mais apropriado para a transmissão de minhas ideias. Meu trabalho “Nai Reesan Shehr Lahore Diyan” (foto), além de dar a impressão dos movimentos da menina pulando corda à medida que a pessoa modifica sua posição ao redor da imagem, também coloca em questão as ambiguidades do desastre que está ao fundo da imagem. É uma mensagem que significa que, mesmo em um ambiente de guerra, temos a possibilidade de paz. Essas dualidades aparecem em meus trabalhos de maneira geral. A impressão lenticular permite essa leitura dupla através do antagonismo entre inércia e movimento.