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abril 28, 2010
Masp exibe colagens de Max Ernst por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo em 23 de abril de 2010.
"Uma Semana de Bondade", série do artista publicada em livros nos anos 30, é um dos marcos do movimento surrealista
Obra com 188 colagens mostra construção do mundo em chave grotesca, denunciando os horrores do início do nazifascismo
É feito de barro, água, fogo e sangue o mundo de Max Ernst (1891-1976). Pelo menos a parte desse mundo que o artista retratou nas colagens da série "Uma Semana de Bondade", nome um tanto irônico para esse marco surrealista construído no levante do nazifascismo. No lugar da bondade, "a desgraça e a violência flutuavam no ambiente", escreveu Ernst. Ele passou três semanas de 1933 num castelo medieval recortando figuras de livros, jornais e revistas franceses para fazer as 188 colagens que publicou um ano depois em esquema de folhetim para donzelas.
Algumas delas não passaram pela censura da época e cortes da editora. A série inteira só foi exposta há dois anos em museus da Europa e está, também na íntegra, na mostra que o Masp abre hoje ao público. Se na Bíblia o mundo surge de ações épicas ao longo de sete dias, a separação da luz e das trevas, da terra e do firmamento, Ernst cria uma novela de costumes para expor numa semana grotesca os horrores da burguesia, mortes violentas, cenas de tortura e registros fantásticos de mazelas da psique.
Não descansa no domingo, dia associado ao barro. Mostra seus homens com cabeça de leão torturando pobres moças. Mulheres amordaçadas viajam em trens ao lado de figuras amarradas. Uma delas oferece os seios à língua do algoz. E elas não param de sofrer no segundo dia, quando um dilúvio arrasa Paris. No dia da água, elas afogam em seus quartos, morrem enforcadas em cascatas que invadem a cidade. É o retrato de uma sociedade impotente diante da natureza.
Ernst ironiza a futilidade da belle époque na terça-feira de sua semana, com homens e mulheres com asas e rabos de dragão. Senhores e senhoras viram répteis em palacetes burgueses, chorando dramas cotidianos, discutindo a relação. Nos retratos nas paredes, dragões observam a rotina. É o absurdo para revelar a violência domesticada, tragédia latente. Na cola desse horror, Ernst revisita o mito de Édipo no dia seguinte. Homens com cabeça de pássaro revivem o drama do filho do rei que não consegue escapar do destino: mata seu pai e se casa com a mãe.
Sonhos e pesadelos
Mesmo que as imagens pareçam inteiriças, com aspecto de gravura, esses homens-pássaro e mulheres-dragão denunciam a construção das colagens e se firmam como ponto alto do movimento surrealista, a reinvenção de um mundo fantástico com fragmentos do real, um tanto como fazem os sonhos.
Isso fica mais claro nos dias finais de sua semana. Vira a anatomia do avesso, desmembra corpos, alça suas mulheres histéricas a um voo libertário. Foi sua tradução em chave de sonho e pesadelo para um mundo de horrores com os pés plantados no chão.