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abril 9, 2010
A arte de dizer a si mesmo por Carolina Marquis no Jornal do Comércio
Matéria de Carolina Marquis originalmente publicada no caderno Panorama do Jornal do Comércio em 09 de abril de 2010
Palavras têm corpo; têm peso e forma. A ausência ou presença delas constitui o discurso. O dito e o não dito estão presentes na exposição O alfabeto enfurecido: Leon Ferrari e Mira Schendel, que inaugura para convidados hoje à noite na Fundação Iberê Camargo (Padre Cacique, 2000) e fica aberta para visitação até o dia 11 de julho. Hoje também haverá uma mesa-redonda no auditório do museu para discutir as obras de Mira Schendel e Leon Ferrari. Luiz Pérez-Oramas, Andrea Giunta e Rodrigo Naves compõem a mesa em que o livro homônimo à exposição será lançado.
O compilado de obras do argentino e da sueco-brasileira, dois dos artistas visuais latino-americanos mais aclamados da segunda metade do século XX, teve sua retrospectiva organizada por Luiz Pérez-Oramas, curador de arte latino-americana do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA).
Depois de ter iniciado no MoMA e passado pelo Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofía, na Espanha, a exposição tem Porto Alegre como destino. “Por se tratar de uma mostra de dois artistas latino-americanos, fizemos questão de que as quase 200 peças chegassem até o Sul do continente americano”, disse o venezuelano Oramas. “Porto Alegre tem um significado especial para O alfabeto enfurecido”, completa. Esta foi a cidade que Mira Schendel, quando saiu da Suíça, escolheu como morada. As peças que estão expostas são acervo de colecionadores paulistas, argentinos, americanos e ingleses, e outras pertencem ao MoMA.
Mira e Ferrari iniciaram sua caminhada nas artes visuais na Itália da segunda metade do século XX, após a 2ª Guerra Mundial. Mais tarde, durante a ditadura militar na Argentina, Ferrari se exilou no Brasil e eles tiveram suas obras pensadas e executadas sob a bandeira verde e amarela. Ambos viviam na cidade de São Paulo, mas, mesmo assim, não chegaram a ter suas peças expostas entre as mesmas quatro paredes.
É justamente nos anos 1960 que os dois desenvolveram de forma mais concisa seus trabalhos de linguagem. Eles usam letras, palavras e até frases inteiras. Interpretam o corpo e o peso da palavra escrita e a miram como objeto artístico que ultrapassa seu significado. “Juntar esses dois artistas é incrível por diversas razões. Ambos viveram momentos históricos de violência política e suas obras giram em torno de dois pontos nevrálgicos: no caso de Mira, a linguagem e Deus, e no caso de Ferrari, a linguagem e o anti-Deus”, conta Oramas
Mira, com suas monotipias, e Ferrari, com as suas obras iconográficas, vivenciaram o mesmo problema sob diferentes prismas: pode-se pensar um problema através de sua afirmativa, ou sua negação. “O positivo e o negativo estão olhando sempre o mesmo ponto, mas sob diferentes ângulos.” Ferrari aborda as questões teológicas a partir do problema político, enquanto Mira olha sobre o ponto de vista filosófico.
O que faz a obra desses dois artistas universal é a maneira como, desde dois lugares diferentes, eles são capazes de compreender uma arte visual baseada na linguagem, em que o importante não é o que se diz, senão o ato de dizer. “Através dos quadros as coisas são ditas não apenas pelo que está escrito, mas pela composição do ato”, diz Oramas.