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abril 8, 2010
O governador europeu por Nildo Ouriques, Diário Catarinense
O governador europeu por Nildo Ouriques
Matéria de Nildo Ouriques originalmente publicada no caderno Cultura do jornal Diário Catarinense em 20 de março de 2010.
*** Leia e assine o abaixo-assinado "Repúdio ao governo do estado de Santa Catarina pela implantação em Joinville da Escola de Belas Artes de Florença da Itália" ***
Eurocentrismo marca a política cultural posta em prática por Luiz Henrique da Silveira nos seus dois mandatos
Não pode existir dúvidas do apreço do governador Luiz Henrique da Silveira pela cultura europeia, pois ele é, muito provavelmente no país, seu mais importante promotor. Há poucas semanas, o governador anunciou que a Academia de Belas Artes de Florença promoverá aqui o Liceu de Arte Florentina e também a construção do museu do aviador e escritor francês Antoine de Saint-Exupéry. Antes dela, também desembarcou em nosso Estado, a convite do governador, a Escola de Mineração e a Escola Nacional de Administração Pública da França. Já deu frutos a Escola do Teatro Bolshoi, de Joinville, outro projeto de extração europeia.
Todas estas iniciativas em favor da cultura europeia possuem certo valor, não se pode negar. Mas essa predileção deveria ser objeto de debate público, antes que contemplação passiva ou aceitação domesticada. Deveríamos ser mais cuidadosos – e um governante brasileiro muito mais zeloso – com a divulgação da arte europeia entre nós, especialmente se a política cultural e científica do Estado não possui semelhante esquema de promoção da arte e da ciência catarinense no Brasil e no exterior. Como explicar esta ação preferencial pela cultura europeia senão como expressão do eurocentrismo, esta ideologia contemporânea que ainda julga a Europa como centro cultural do mundo moderno, de onde, supostamente, a cultura catarinense e brasileira encontraria as luzes para a afirmação de nossa identidade? Esta ação preferencial pela Europa – que em muitos domínios da arte e da ciência é claramente decadente – merece uma avaliação crítica. No contexto atual, ela tem a marca de um exclusivismo inaceitável e, na forma, representa uma opção provinciana! Por que exclusivismo? Porque não conheço um convênio semelhante realizado pelo governo do Estado com qualquer país africano; a marca do governo de LHS é, em relação à África, de desencanto e desconhecimento, a despeito de fato de que mais de 10% da população catarinense é negra. Tampouco existe uma ação cultural consistente em relação à América Latina ou mesmo limitada ao Mercosul. Após oito anos de governo, simplesmente nenhum projeto ambicioso, digno de registro nos artigos de imprensa do governador, surgiu entre nós por iniciativa do Estado.
Por que o governador ignora olimpicamente a cultura latino-americana e africana? Descarto, de imediato, a afirmação preconceituosa segundo a qual não existiriam projetos que justificassem um forte intercâmbio cultural com estes continentes. Neste contexto, como ignorar o trabalho extraordinário do Icaic cubano no cinema, escola em que Gabriel García Márquez ensinou produção de roteiro? Por que não aproximar a experiência mexicana no trato do patrimônio histórico e na construção de museus, áreas da cultura em que eles são simplesmente excepcionais? Acaso podemos desconsiderar as potencialidades culturais com a vizinha Argentina, um país que recebe mais de 1 milhão de turistas brasileiros por ano, cifra superior ao número de brasileiros que visitam os Estados Unidos? Como é possível que a ação estatal na área da cultura mantenha tal distância dos argentinos quando, inclusive, as cifras do nosso turismo indicam clara preferência pelo país vizinho?
Durante muitas décadas, a elite brasileira sonhou em transformar o Brasil numa extensão da Europa. Esta tentação colonial, sempre travestida de modernidade, criou o mito de que em Santa Catarina – em função da migração alemã e italiana ocorrida no século 19 – se produziu uma espécie de pequena “comunidade europeia”, destinada a reproduzir aqui a promessa das “luzes europeias”. Nada mais perverso e limitado culturalmente.
Um projeto cultural criador, aberto aos ventos do mundo, não pode ficar restrito às iniciativas europeias; não pode desconsiderar a cultura árabe – que também tem raízes em nosso Estado –, ignorar a presença africana e a comunidade latino-americana a qual, sem dúvida, pertencemos. O governo do Paraná, aqui ao lado, desenvolve com êxito a Mostra cultural de integração dos povos latino-americanos.
Além do eurocentrismo que marca a ação cultural do governador, é preciso insistir no fato de que a ação cultural do Estado precisa enfrentar a indústria cultural e não figurar como um organismo dela. Os países metropolitanos produzem a cultura como um instrumento de poder, ou seja, de hegemonia. Ignorar este dado elementar de nosso mundo é ignorar o essencial. Mais grave ainda se não esquecermos – e jamais poderemos esquecer – o fato de que nossos países sofreram três séculos de colonialismo (1492-1825). Este longo período é superado com as independências; mas estas, como também sabemos, consolidaram a característica mais importante de nossa formação social: a dependência, o subdesenvolvimento. Também por esta razão, a elaboração da política cultural nos países subdesenvolvidos como o Brasil possui um grande desafio, ou seja, aquele de desenvolver nossa própria cultura, alimentá-la com todas as tendências contemporâneas e não exclusivamente com a europeia e, especialmente, promovê-la “no mundo”. A falta de compreensão desta questão elementar, presente em toda política cultural produzida na periferia do capitalismo, reduz o entusiasmo pessoal do governador e a política cultural do Estado ao reforço do colonialismo e não, como pretensamente aparece, como abertura para o mundo. A manutenção desta orientação não fará menos do que reforçar nossas limitações culturais e representa política alienante que necessita severa reorientação. Enfim, antes do que viver das migalhas culturais da Europa é preciso que a política cultural do Estado experimente efetivamente os “ares do mundo”.
De maneira geral, os defensores desta política de corte colonial apresentam as virtudes francesas como expressão de uma “cultura universal”. No período recente, a cultura nacional francesa está a serviço do “universalismo europeu”, projeto cultural destinado a afirmar o poderio supraestatal europeu contra a indústria cultural estadunidense. A simples importação de projetos europeus – e muito especialmente franceses – fortalece um dos bandos em disputa e, talvez, somente marginalmente, somaria para a elaboração de um projeto cultural catarinense digno deste nome, com alcance de massa, articulado nacionalmente. Enfim, ainda que os defensores da linha dominante na política cultural do Estado pretendam evitar o debate sobre esta questão reduzindo nossas opções, estamos diante de duas possibilidades: nosso Estado se transforma num apêndice reprodutor da cultura francesa ou abre as portas para um projeto cultural de novo tipo, efetivamente universal, cujo objetivo não pode ser outro do que o fortalecimento de nossa própria cultura.