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março 15, 2010
Arte popular conquista novo status por Ana Paula Souza, Folha de S. Paulo
Matéria de Ana Paula Souza originalmente publicada na Ilustrada da Folha de S. Paulo em 14 de março de 2010.
Galeristas convidam grifes da arte contemporânea para assinar catálogos; peças representam 15% do volume de leilão
Trazido do interior de Sergipe para vernissage em São Paulo, o escultor Véio é a feição desse movimento que começa a se desenhar
Sandália de couro nos pés, toco de madeira nas mãos, Cícero Alves dos Santos tem os olhos baixos quando a reportagem da Folha chega à galeria Estação, em Pinheiros. Passam-se alguns segundos até que ele erga o rosto e, após uma última talhada no miúdo tronco de imburana, explique: "Se fico parado, fico meio neurótico. Tô sempre fazendo uma coisinha. Desde menino sou assim. Quando tinha 5 anos, trabalhava com cera de abelha e, escondido do meu pai, modelava uns bonequinhos".
É assim, frase ao léu, que Santos, conhecido como Véio, encurta o caminho que leva à origem da chamada arte popular. Feita por autodidatas vindos das camadas simples da população, essa arte, de difícil conceituação, não raro é tomada por artesanato ou, no máximo, como manifestação pitoresca. Naify. Primitiva.
Pois Véio, na última quinta-feira, ao conduzir uma visita guiada seguida de coquetel, começava a desvencilhar-se dessas palavras para saltar para outro verbete: arte. "Era um antigo sonho. Tratar esses artistas como artistas. E ponto", diz a galerista Vilma Eid, artífice do movimento que busca dar novo status à arte popular.
Ela chamou o pintor Paulo Pasta para escrever sobre o ex-cortador de cana José Antonio da Silva (1909-1996), o curador Rodrigo Naves para refletir sobre o escultor sertanejo José Bezerra e Paulo Monteiro para avalizar Véio. "Com essas aproximações, estamos chegando a um novo público."
Seja ou não graças à mão de verniz, a arte popular tem visto os preços subir. Em São Paulo, onde durante muitos anos uma só galeria especializada existia, a Brasiliana, hoje há outras duas: a Estação e a Pontes. "Proporcionalmente, foi a arte mais valorizada nos últimos cinco anos", diz a leiloeira Soraia Cals. Até 2005, essas obras não ouviam o barulho do martelo. Hoje, representam 15% das peças leiloadas. Mas o dinheiro ainda é mínimo.
Mesmo os nomes mais valorizados, como os escultores Vitalino (1909-1963) e G.T.O. (1913-1990) e os pintores Heitor dos Prazeres (1898-1966) e Silva, custam pouquíssimo se comparados à arte dita erudita. Um quadro de Prazeres não ultrapassa os R$ 40 mil. Uma boa peça de Vitalino, o colhedor de algodão que viu seus bonecos partirem das feiras de Caruaru para os salões de arte, sai, no máximo, por R$ 25 mil.
"Há um preconceito em relação à arte feita por quem está na base da pirâmide social", diz Roberto Rugiero, da Brasiliana. "Tanto que, muitas vezes, quem compra essas peças ainda as deixa reservadas à casa de campo. Mas houve um tempo em que não era assim."
Rugiero refere-se ao modernismo e ao desejo de fusão entre popular e erudito. Foram os modernistas que festejaram Silva e Vitalino e se deixaram levar por temas tipicamente populares - basta lembrar dos sambistas de Di Cavalcanti e dos retirantes de Portinari.
"Não consigo pensar em popular ou não popular, e sim em bons e maus pintores", diz Pasta. "O Silva tinha faro para a questão do plano, inteligência do olho, intuição." Parece que o diálogo existente nos anos 1930 e 1940 e depois silenciado volta a sussurrar. "Passamos muito tempo vendo essa arte como pitoresca", diz, numa espécie de mea-culpa, o crítico Rodrigo Naves. "Me parece que a arte contemporânea está cada vez mais acadêmica, repetitiva. Também por isso a originalidade do Zé Bezerra me atraiu."
A galerista Edna Pontes arrisca outra explicação: "A arte popular está sendo beneficiada pela valorização da brasilidade". Rugiero, por sua vez, acha boas as adesões, mas mantém um pé atrás. "A ausência de uma referência crítica dá margem a blefes. Outro risco é transformar o artista em mico de circo e enxergar autenticidade no que é só repetição."
Nuno Ramos, que não havia pousado os olhos sobre arte popular até ser apresentado a Bezerra, gostou do que viu, mas teme generalizações. "Temos que tomar cuidado com o discurso populista do "vamos dar uma chance" ou "olha que história incrível a dele'".
Esse temor estende-se, inclusive, aos artistas. "Tem vezes que só querem que a gente fale que trabalhou na lavoura, essas coisas", diz o pintor Nilson Pimenta que, quando menino, na roça, desenhava em cercas e árvores e hoje vive de arte. "Mas se virem também o que eu pinto, aí já tá bom."
RECONHECIMENTO OU SAQUE CULTURAL?!?
Essa classificação da arte como erudita (de elite) ou popular (do povo) é ridícula e preconceituosa, é arte e ponto.
Mas, olho sempre com desconfiança pra esse "reconhecimento" da arte popular que já era pra ter acontecido há muito tempo atrás. Ao meu ver, em vez de reconhecer a arte popular eles costumam se apropriar dessa passando a chamar de erudita, como fizeram com Leonilson ou com o jazz, por exemplo, tirando-a do povo. Como se o fato de ser popular, portanto, uma manifestação que vem do povo, a desvaloriza-se como arte (manifesto do intelecto humano), por essa não pertencer a uma elite opressora. Como se uma manifestação artística que vem do povo não fosse manifestação intelectual. Novidade: apesar da elite olhar o povo como coisa e fazer com que este se veja como tal tecendo uma teia de alienação e manipulação que cega e impede a maioria da população de pensar, portanto de ser humano, ainda existem os resistentes, pensando, criando, criticando, fazendo ARTE e lutando por sua humanidade...
Esse “reconhecimento” me parece mais com invasão e saque cultural. E se esse "reconhecimento" for pra tirar o que nasceu do povo para o povo, e restringir a uma elíte opressora, fazendo desta arte um objeto de reafirmação de um status elítista, por favor, deixe que esta continue marginal.
A pergunta que fica no ar: RECONHECIMENTO OU SAQUE CULTURAL?!?