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fevereiro 10, 2010
O arquiteto da destruição por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada da Folha de S. Paulo em 10 de fevereiro de 2010.
Americano que repudiou o urbanismo com fendas nas paredes, Matta-Clark tem retrospectiva em SP
Um rasgo na lateral de um prédio traz a brisa para dentro e revela a demolição do lado de fora. Dava para ver o esqueleto do Pompidou, em Paris, enquanto retroescavadeiras arrasavam o bairro de Les Halles.
Três anos antes de morrer, em 1978, Gordon Matta-Clark retalhou o vizinho do museu que trouxe discórdia ao centro parisiense. Fazia de seus cortes um interrogatório de estruturas urbanas. Aguçava o olhar para o fracasso da arquitetura."Ninguém sabia o que ele estava fazendo, só mais tarde viram que havia uma lógica na obra dele", lembra à Folha Jane Crawford, viúva do artista tema da retrospectiva que o Museu de Arte Moderna de São Paulo abre amanhã. "Seus amigos todos se contradizem."
Ela conheceu Matta-Clark no vernissage de uma exposição em Nova York. Moravam num SoHo pré-especulação imobiliária e boutique da Apple, um lugar com dois bares e artistas conceituais famintos, tipo Richard Serra. Viveu três anos com Matta-Clark, arquiteto de formação, filho do surrealista chileno Roberto Matta e afilhado de Marcel Duchamp.
"Pediram para fazer um projeto na galeria onde eu trabalhava", conta Crawford. "Ele quis construir um túnel subterrâneo que ligasse a galeria ao prédio do outro lado da rua, que era o banco Chase Manhattan. Não deu certo, mas a gente se deu muito bem."
Matta-Clark, aliás, não conseguiu realizar boa parte de seus projetos. Terminavam sempre num acordo com autoridades, curadores, burocratas. Mas conseguiu rachar uma casa ao meio, perfurar um prédio de escritórios em Antuérpia e mergulhar nos subterrâneos de Paris e Nova York.
Urbanismo e Freud
"Sua relação com a arquitetura era quase freudiana", resume Gabriela Rangel, curadora da mostra. "Era o fim da Guerra do Vietnã, ele promoveu uma mudança de paradigma: a cidade como paisagem política."
Enquanto o fim do conflito lastreava o foco no corpo de seus contemporâneos, a bala no braço de Chris Burden, a masturbação de Vito Acconci, Matta-Clark violava as construções. Queria denunciar utopias que fracassaram antes mesmo de existir e os absurdos da especulação imobiliária.
Em "Fake Estates", comprou lotes de terra diminutos -e inúteis- em Nova York. Eram espaços vazios espremidos entre terrenos já vendidos. Manteve as escrituras dos lotes até morrer. Sua viúva, sem dinheiro para pagar impostos sobre esses terrenos-manifesto, doou tudo ao traficante do bairro.
No MAM, esses lotes aparecem agora em fotografias ao lado das escrituras, documentos que atestam o poder de uma ação que ficou só na memória. Quase todos os cortes de Matta-Clark também foram demolidos, sobrando só vídeos e fotografias para contar a história.
"Esses documentos têm a força de um mito", diz Rangel. "Não é preciso ver a ação, só saber que foi algo contundente."
Têm mesmo poder inegável as fotografias de casas rachadas, frestas abertas à força em blocos de concreto. Mas quem andou por ali sentiu algo mais. "Quando atravessava aquele vão, de um lado para o outro da casa cortada, sabia que havia algo muito errado", lembra Crawford. "Aquele desconforto alertava mais para o perigo, fazia acelerar meu coração."