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setembro 15, 2009
A performance dos outros por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo, em 13 de setembro de 2009
Laura Lima usa o corpo de homens e mulheres como esculturas vivas em ações artísticas
Primeira a ter performance comprada por um museu no país, artista tem duas mostras em cartaz e faz curadoria da próxima Bienal do Mercosul
Laura Lima não encontra palavras para descrever o que faz. Mal toca no doce que pediu no café enquanto dava esta entrevista, como se esperasse alguém para comer em seu lugar. Também é uma artista de corpo ausente da própria obra. Só o corpo, porque define, de forma cerebral, até o último milímetro as tarefas que suas "pessoas-carne" terão de executar. Lima não faz performances, mas põe gente em ação.
Foi a primeira artista no país a ter uma dessas ações compradas para o acervo de um museu. Agora tem duas individuais em cartaz, uma em São Paulo e outra no Rio, e está na curadoria da próxima Bienal do Mercosul -sinal de que não para, mesmo que fique por trás das cenas.
Na obra que primeiro deu projeção a esta mineira radicada no Rio, uma menina de oito anos vestia uma camisola branca e brincava de pular corda numa piscina de gelatina vermelha. "Parecia um parto às avessas", diz Lima sobre a ação no parque Ibirapuera em 1996. "Não pensei que ela se sujaria inteira, foi algo indomável."
É o aspecto volúvel, o curso do trabalho na mão de terceiros, que define toda sua obra. Lima diz buscar a "energia vital" em tudo que faz, mas fica um passo antes da performance, já que mostra o corpo vivo como se fosse escultura. Obriga suas "pessoas-carne", como define os executores de suas tarefas, a passar horas a fio instaladas no espaço expositivo, algo como múmias que respiram.
"Não tem início, meio e fim", diz. "Esse corpo está ali, vivo, mas num sentido museográfico, como se fosse uma pintura." Ou escultura. "Puxador" era um homem nu amarrado às colunas do Museu da Pampulha por uma série de cordas, como se fosse deslocar o prédio com a tração do corpo. Noutra versão do mesmo trabalho, ele entrava no espaço amarrado às árvores e postes do lado de fora. "É a pessoa-carne que puxa as paragens para dentro da galeria", descreve. "É o que muitos pintores de paisagem já fizeram."
Mas já incomodou a nudez desse homem, tanto que um museu pediu à artista que cobrisse as carnes de sua pessoa. Ela recusou e cancelou o trabalho. "É em torno disso que se constrói a imagem", diz ela. "É o corpo ali na situação mais crua, uma pesquisa primordial que faço em torno da matéria."
Essa matéria é carne, e a crueza mostra que está viva. Lima se liga de maneira umbilical ao performer Vito Acconci por suas preocupações arquitetônicas, sua obsessão pela incerteza do instante e pelo recurso à nudez como expressão formal. Mas também confeccionou muitas roupas, seus chamados "Costumes", para embalar a carne -ação que lembra o brasileiro Flavio de Carvalho, outro pilar que sustenta sua obra.
Como ele, que foi arquiteto, artista, performer e escultor, Lima diz não se encaixar em lugar nenhum. "Estou tão focada nas minhas questões, que não existe nem uma palavra para descrever o que estou fazendo", pondera. "Talvez o glossário da arte esteja um pouco aquém."
Não espanta que ela gaste tanto tempo explicando o trabalho a cada "pessoa-carne" que aparece para executar suas ações, o momento de "moldar" o performer. Com medo de que museus acabem descartando essa ação e mostrando só os instrumentos do trabalho, como cordas e roupas numa vitrine, Lima pretende gravar depoimentos para a posteridade. "Não vou fazer uma coisa totalitária, mas os desvios serão apontados", diz. "Eu construo aparatos para o corpo, mas é proibido mostrar só o aparato."
Só que ela sabe que corre o risco de tudo virar fetiche quando não estiver mais por perto, por isso assiste às ações como o público. "Eu sou mais um que olha", resume. "Aquilo tudo é risco, a coisa inexorável daquele instante sem ensaiar."