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setembro 15, 2009
Quadrado negro por Ferreira Gullar, Folha de S. Paulo
Matéria de Ferreira Gullar originalmente publicada na Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo, em 13 de setembro de 2009
Malevitch rompeu com a figura para expressar a sensibilidade da ausência do objeto
KASEMIR MALEVITCH , juntamente com Wassily Kandinsky e Marc Chagall, é um dos mais representativos nomes da vanguarda russa do começo do século 20. Mas o que o distingue daqueles dois outros pintores é o caráter radical de sua experiência artística, que o levou ao limite da expressão pictórica. Nos anos iniciais do século 20, era intenso o intercâmbio cultural entre as capitais europeias -especialmente Paris- e a Rússia ocidental, cujos principais centros de cultura eram São Petersburgo e Moscou.
Na verdade, a elite econômica e intelectual russa vinha beber na Europa ocidental as novidades artísticas, as expressões inovadoras que sacudiam a vida cultural europeia. Assim como, para a surpresa de Karl Marx, as ideias comunistas encontraram na Rússia terreno fértil para se implantarem e se desenvolverem, mais do que nos países europeus desenvolvidos, também o cubismo e o futurismo ali se implantaram e floresceram, dando origem a movimentos inovadores, em espantosa quantidade, que surpreenderiam os parisienses ou berlinenses.
A exposição "Virada Russa", que esteve no Rio e agora pode ser vista no Centro Cultural do Banco do Brasil, em São Paulo, permite ao visitante constatar isso: as obras expostas surpreendem pela vitalidade e pela audácia criativa de seus autores, que, influenciados pelas vanguardas europeias, ultrapassaram o que elas propunham, ou inovando ou levando às últimas consequências o que, em Paris, Berlim ou Milão, ainda eram simples possibilidades ou potencialidades irrealizadas.
Deve-se observar, também, que essa ebulição estética, na Rússia, coincidia com a efervescência revolucionária, no plano social, que culminaria com a Revolução de 1917. Kandinsky e Chagall tomaram rumo próprio, inovadores que eram, mas voltados mais para uma poética do sonho (Chagall) ou da espiritualidade (Kandinsky). O rumo tomado por Malevitch, Tatlin, Lissitzky e Rodchenko, entre outros, parte das possibilidades implícitas tanto no cubismo quanto no futurismo e as levam à ruptura com a linguagem da pintura e da escultura.
A obra "Quadrado Negro", de Malevitch, exposta na referida mostra, é um dos momentos extremos dessa radicalidade. Outro momento é o "Contra Relevo", de Tatlin -que também integra a exposição-, e cuja denominação e concepção inspirou uma série de obras de Hélio Oiticica. O "contra relevo" é uma invenção do artista russo, que dá consequência a uma questão posta aos escultores modernos, ou seja, a concepção de uma forma abstrata, sem a base que a sustenta e, ao mesmo tempo, separa do mundo real. Dentro dessa problemática, mais tarde, Moholy Nagy conceberia a escultura que se mantinha no ar graças ao impulso do ar comprimido.
Mas voltemos ao "Quadrado Negro". Malevitch -que inicialmente pintou quadros por ele intitulados de cubofuturistas- rompeu radicalmente com a figura ao criar o movimento suprematista, em que pretendia expressar "a sensibilidade da ausência do objeto". Assim que, no referido "Quadrado Negro", pretendia nos dar o objeto ausente. Não obstante, aquele quadrado, se não era a figura de um objeto, era ainda uma figura -uma figura geométrica. Por isso, a pretensão malevitiana de chegar a uma linguagem essencial, totalmente não figurativa, mostrou-se inviável.
Já antes, em 1918, havia levado essa tentativa a seu extremo limite, quando pintou o "Quadrado Branco sobre Fundo Branco", pois o passo adiante seria a tela em branco, o fim da pintura ou seu recomeço. Foi quando abandonou a tela e passou a construir, no espaço real, as "arquiteturas suprematistas", de que há alguns exemplares na referida mostra.
A mesma radicalidade levou Lygia Clark ao quadro todo negro e, depois, ao quadro todo branco, que significava, como o foi para Malevitch, o impasse. Também ela abandonou a tela para construir os seus "Bichos", no espaço real. Isso, sem saber do que fizera o artista russo, décadas atrás. É que ela, como Malevitch, havia enveredado pelo mesmo caminho: a utopia de uma arte autônoma, desligada da representação da realidade exterior.
Até a década de 1950, o mundo conhecia mal as vanguardas russas, que haviam sido subitamente tiradas de cena, depois de 1924, quando morreu Lênin e assumiu Stálin. A arte russa retrocedeu para o figurativismo retórico do realismo socialista. Foi o livro "L'Art Abstrait", de Michel Seuphor, publicado nos anos 50, que me revelou o que hoje nos mostra a exposição aberta agora no CCBB de São Paulo.