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agosto 24, 2009
Matissismo por Jorge Coli, Folha de S. Paulo
Matissismo
Matéria de Jorge Coli originalmente publicada no Caderno Mais no Jornal Folha de S. Paulo, em 23 de agosto de 2009.
O historiador Jorge Coli insere a obra de Henri Matisse, que ganha exposição no Brasil no início de setembro, na tradição dos "artistas da decoração", da qual fazem parte Van Gogh e Gauguin - e que influencia também o cineasta Wong Kar-Wai
Uma tela de Matisse oferece sempre a impressão de que as angústias, os desesperos, as pulsões afetivas são sentimentos de mau gosto e devem ser excluídos. Matisse é o antirromântico, o antiexpressionista e também o anti-intelectual, o antiteórico.
Pintor da felicidade plena, que é aristocrática, na sua maneira de ignorar, desdenhosa, toda e qualquer miséria, incluindo nelas as do próprio artista. Pintor da luz sem sombra.
No início de sua carreira, ligou-se a um grupo, do qual ele teria sido mesmo o instigador: os "fauve", as feras, que reunia artistas muito diversos, sem doutrina nem unidade estilística, mas que faziam explodir cores por meio de traços vívidos, habitados por acordes ao mesmo tempo selvagens e requintados.
Depois do episódio "fauve", Matisse prosseguiu seu caminho bastante indiferente aos movimentos de vanguarda que surgiam. É possível aqui e ali encontrar, em suas telas, leves ecos de um ou outro contemporâneo, mas eles são insignificantes.
Talvez seja superficial querer ordenar sua produção em "fases". Sem dúvida essa organização permite classificar as obras em períodos e segundo algumas características comuns. É importante, porém, que essas divisões não escondam a unidade evidente que preside a todo o conjunto, unidade infinitamente mais poderosa do que as diferenças, bem secundárias: Matisse não é Picasso.
As preocupações, tanto teóricas quanto históricas, sempre convocadas para se compreenderem as artes do século 20 não servem para ele: nem a abstração, nem as forças do imaginário surrealista, nem o gesto voluntariamente crítico, nem a desconstrução como objetivo, nada disso permite de fato apreender esse artista que dizia, com falsa candura, que seu único desejo era agradar.
Palavra-chave
Um caminho, não muito usual, pode conduzir à compreensão de alguns aspectos importantes de sua arte. Ele se inicia com o aprendizado no ateliê de Gustave Moreau [1826-98]. O mundo precioso desse mestre, cheio de ouros que se associam a tons e brilhos de esmeraldas, safiras ou rubis; o espírito de crueldade decadentista, perversamente sexuada, nada disso parece avizinhar-se da arte que seu discípulo desenvolveria.
Contudo, muitos quadros de Gustave Moreau criaram imagens nas quais personagens e cenário, altamente decorativos, se fundem. Este é o ponto. O próprio Matisse lançou a palavra-chave numa frase: "A composição é a arte de organizar, de maneira decorativa, os diversos elementos de que o pintor dispõe para exprimir seus sentimentos".
Decorativo, decoração, termos odiados pelos pintores abstratos que surgiriam no século 20, temerosos de serem acusados de superficialidade frívola e agradável.
Mas a decoração significou, para vários artistas, o lugar em que a pintura podia se dar. Nesse sentido, Matisse não é um solitário.
Os padrões de papel de parede, as estampas de tecido, os desenhos de estofados, os arabescos orientais, o torneado de uma cadeira, o aveludado de uma almofada, tudo isso era tratado não como acessório, mas como o lugar da visualidade (pensar em "O Convite à Viagem", de Baudelaire: "Móveis lustrosos/ Polidos pelos anos/ Decorariam nosso quarto./ As flores mais raras/ Fundindo seus odores/ Aos vagos eflúvios do âmbar,/ Os tetos suntuosos/ Os espelhos profundos/ O esplendor oriental/ Tudo lá falaria/ À alma em segredo...").
Paraíso artificial
Ali, nessa visualidade em que as superfícies determinam o mundo, surgia uma lírica própria à pintura, sem que esse "próprio à" signifique abstração, que tantos pensaram ser a quintessência pictural.
Todos esses motivos que completam o conforto quotidiano pelo embelezamento dos objetos concebidos para o prazer dos olhos, ao serem levados a sério, constituíram, portanto, um "lugar". Nele, a natureza é transfigurada, graças ao universo decorativo, num paraíso artificial. Basta ver "As Musas", de Maurice Denis [1870-1943], ou um jardim pintado por Vuillard [1868-1940], para perceber do que se trata.
Matisse intitulou uma de suas obras "Luxe, Calme et Volupté" (Luxo, Calma e Volúpia). É um estribilho no poema "O Convite à Viagem", de Charles Baudelaire [1821-67], escritor que inventou e celebrou os paraísos artificiais, embriagadores, irreais.
O Baudelaire de Matisse vem despido de angústias e perversões: o pintor instalou-se naquela utopia sem falhas. As telas são convites à viagem no sentido exato do poema: criam uma Pasárgada de atmosfera imóvel e de prazer perfeito.
Avesso a qualquer espírito de sistema, Matisse inventa sempre soluções, recusa a aplicação de fórmulas ou receitas. Assim, por vezes, dispõe o espaço, como no caso do "Torso Grego com Flores" (1919), do Masp, em que a escultura repousa sobre uma mesinha meio cézanniana. Ao contrário, em "O Quarto Vermelho (Harmonia Vermelha)", do Hermitage (1908), os motivos da toalha e da tapeçaria se unem para neutralizar o volume do móvel.
Em 1935, o "Grande Nu Deitado (Nu Rosa)", do museu de Baltimore, recorta uma ampla forma feminina num talho achatado, que adere aos desenhos geométricos do fundo: essa obra, que faz lembrar Tom Wesselman [1931-2004], sugere o quanto certos criadores da pop art foram próximos de Matisse.
Maurice Denis, Vuillard são vizinhos, porém distintos de Matisse, irmanados nesse mundo de estofos e tapetes. Mas seria preciso pensar também em Klimt [1862-1918]. Tudo o opõe a Matisse: sua poética simbolista, sua aspiração a um horizonte filosófico, a finura nítida de seus contornos, seus ouros raros.
No entanto, Klimt também ajusta suas figuras, seus tecidos, seus fundos, na mesma intensidade presente, recortando superfícies, justapondo-as, exaltando magníficos padrões de estamparia. Como Matisse, é fascinado pela ambiguidade entre a figuração e os poderes decorativos.
Esplêndida família
Seria necessário agrupar e classificar alguns "artistas da decoração" (sem que -mas é preciso dizer?- essa palavra tenha aqui a menor sombra de menosprezo) para melhor perceber o universo ao qual Matisse pertence.
Gustave Moreau é o pai de todos. Seu espírito decadentista e cintilante, à maneira de Huysmans na literatura, se prolonga em Klimt. Seu artificialismo, a elegância de seu desenho permanecem também entre os nabis (artistas espiritualizados e marcados por Gauguin), sobretudo Maurice Denis, e se metamorfoseiam então numa serenidade de tapeçaria. Vuillard, por sua vez, não assume a calma elevada de Denis e torna-se o "tapeceiro" de um quotidiano aconchegante.
Surgiram também, nessas mesmas décadas, os cenários dos balés russos, criados por Bakst e por Benois, feitos de imaterialidade, como escreveu Proust, graças a seus ornamentos lineares, suas manchas coloridas, que a iluminação estratégica fazia viver.
Essa esplêndida família que confere ao visível o destino de seduzir os olhos, que o transfigura para ordená-lo em harmonia sem peso, tem os seus referentes mais antigos, os seus avós, por assim dizer.
Van Gogh [1853-90], em particular o do período de Arles, o mais clássico, menos atingido pelas tensões torturantes, que não ilumina os objetos e pinta diretamente a luz, como manchas de ouro.
Mas ainda o Van Gogh da "Noite Estrelada" de Saint-Rémy, na qual as estrelas explodem metamorfoseadas em fogos de artifício. Gauguin também, com seus recortes achatados de soberbas sinuosidades, coloridos com os tons mais ricos, que Matisse homenageia, confessando a grande dívida que tem para com ele.
Matisse elimina qualquer preciosismo, qualquer veleidade de afetação ou de dandismo
Veludos
Antes de todos, está Ingres [1780-1867], pintor que abole a atmosfera para fazer melhor luzir as superfícies, que trata um rosto feminino e o bordado de um vestido com a mesma exata importância. Artista do desenho soberano, dos magníficos e longos percursos lineares que ondulam. As odaliscas de Matisse e as de Ingres unem-se num parentesco muito próximo.
Seria injusto também não evocar Delacroix [1798-1863]: de suas "Mulheres de Argel" brotam outras odaliscas nos quadros de Matisse.
Dentre os seus descendentes atuais, está o cineasta Wong Kar-wai, que dispõe personagens diante de paredes ricas de motivos e de cores ou em meio a uma saturação de sedas e veludos caros.
Matisse, nessa galáxia, elimina qualquer preciosismo, qualquer veleidade de afetação ou de dandismo. Sultão voluptuoso, é o hedonista que ama o luxo das cores generosas e a fluência das curvas femininas.
Em suas telas, toma posse do visível graças às harmonias cromáticas as mais audaciosas em que, muitas vezes, irrompe o tom negro e franco, herdado de Manet, portador de uma luz paradoxal.
Essas harmonias se dispõem no equilíbrio das formas, sem que nunca adquiram a espessura ou o peso de um volume material que as sustente. Possuem a leveza abreviada dos motivos estampados, que flutuam graças aos seus próprios ritmos.
Para mim (idiota que sou), Matisse é Pintor.
Tudo se resolve na tela e não há nada fora dela.
O "mundo" não é tema, apenas pretexto para pintar.
Não há decoração nem projeto nem idéias nem tempo, não há história nem História nem viagem nem possibilidade de comparação ou exemplos possíveis pois tudo isto é externo ao "quadro".
Há o plano, linhas e cores.
Só há a relação entre as cores e como elas se distribuem no plano.
Cada quadro é único. Como não se relaciona com o mundo, não se relaciona com os outros quadros e por isso não se enquadra em movimentos ou épocas ou teorias inventadas.
O "quadro", a pintura, É.
Como o Ser É.
(Que me perdoem, Matisse e Heidegger).
O resto é coisa de teórico.
Vá e veja.
osz.
Posted by: Osni Winkelmann at setembro 3, 2009 6:32 PMEu não deveria escrever nada sobre esse texto fraco, opinativo e longe dos parâmetros de um pesquisador coerente...Coisa grave! Mas tenho que perguntar uma coisa... Foi o Diogo Mainardi que escreveu esse texto?
Posted by: Eduardo at setembro 3, 2009 9:45 PM