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agosto 11, 2009
Cravo Neto transgrediu códigos da fotografia por Eder Chiodetto, Folha de S. Paulo
Matéria originalmente publicada na Ilustrada da Folha de S. Paulo, em 11 de agosto de 2009.
Artista, que morreu domingo, buscava manifestações cósmicas no cotidiano
"UM MOMENTO de beleza é um momento de encontro", escreveu o artista Mario Cravo Neto, morto no último domingo em Salvador, aos 62 anos. E a beleza de sua arte, de fato, se explica em boa parte pela criação de um espaço simbólico de celebração de encontros. Sua fotografia promove de forma singular a junção entre realidades visíveis e as fronteiras do ficcional, entre mito, vida e arte. Sua percepção aguçada o levou a perceber, nos gestos cotidianos, manifestações cósmicas onde se podia entrever a origem do universo. O ancestral embutido no banal.
Esse caráter metafísico de seu trabalho foi gestado, não há como negar, pelo ambiente artístico e sincrético de Salvador, na Bahia, onde nasceu, foi criado, viveu e, por fim, transformou no pano de fundo de sua obra. "Na Bahia encontra-se o que a gente tem carinhosamente em comum e não agressivamente o que tem de diferente", escreveu nos agradecimentos do livro "Laróyè" (Áries Editora, 2000), sem dúvida, um dos mais belos, importantes e vigorosos livros de fotografia já editado no Brasil. "Laróyè" é uma saudação em iorubá para o exu, entidade controversa adorada por Cravo Neto.
Além do cenário, havia a família e seu entorno a contribuir. O escultor Mario Cravo Junior, seu pai, ao saber naquele abril de 1947 que sua mulher estava em trabalho de parto no hospital, optou por ficar em casa, de frente para o mar, ouvindo "Prélude à l'Après-midi d'un Faune", de Claude Debussy. Depois, levaria seu pequeno "fauno" para conviver com artistas e intelectuais de sua geração como Jorge Amado, Pierre Verger, Carybé e Pietro e Lina Bo Bardi, entre outros tantos.
Trabalhando em paralelo com a escultura e a fotografia desde os 17 anos, Mariozinho, como seria sempre chamado pelos mais íntimos, aprimorou seus estudos após morar em Berlim com o pai e rodar a Europa. Estudou com o fotógrafo Max Jacob e com o pintor modernista italiano Emilio Vedova (1919-2006). Em 1968, estudou na Arts Students League, em Nova York.
Num dado momento da carreira, percebeu que seria impossível manter em paralelo as atividades de escultor e fotógrafo. Optou pela segunda. "Jorge Amado, assim como outros, gostavam de minhas fotos e diziam que eu devia me dedicar só a ela", contou.
Um sério acidente de carro em 1975 o deixou com as duas pernas quebradas e sobre uma cama por cerca de um ano, levando-o à fotografia de estúdio. Iniciou assim as séries em preto e branco "O Fundo Neutro" e "Meus Personagens", as mais conhecidas de sua trajetória e que constam nas mais prestigiadas coleções particulares e públicas do mundo como a do MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York), a do Tokyo Institute of Polytechnics, a da Fundação Cartier (Paris), entre muitas outras.
Arte colecionável
No contexto da fotografia de arte brasileira, Cravo Neto tem uma importância fundamental: foi um dos primeiros a ter sua obra valorizada pelo mercado de arte internacional, a introduzir no Brasil a ideia da fotografia como objeto de arte colecionável, a discutir tiragem, qualidade de cópia etc.
Para além desse aspecto, a obra de Cravo Neto continuará a ser uma chave fundamental para se discutir um tipo de arte que utiliza elementos mínimos para expressar a ancestralidade do homem, seu lugar no universo, a poética que envolve a noção de passado e futuro etc.
Foi assim, por exemplo, que se deu sua incursão no candomblé. Ao fotografar os ícones ritualísticos da religião afro-brasileira, Cravo Neto buscava de forma muito peculiar conectar objetos, pessoas, atmosfera, símbolos e mitos organizados em sua beleza escultórica para celebrar a pulsão de vida da matéria. A morte como parte dessa pulsão, um ciclo que não cessa.
Com Cravo Neto, a fotografia transgrediu códigos e ampliou suas possibilidades de representação. São raros os artistas que conseguem ampliar o repertório de sua arte dessa maneira. E raros artistas não morrem jamais. Laróyè!