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julho 9, 2009
Cuba na vitrine por Silas Martí, Folha S. Paulo
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na Ilustrada no Jornal Folha S. Paulo, em 9 de julho de 2009.
Apesar do futuro político incerto na ilha, mercado de arte esquenta e atrai novos colecionadores
Vista geral da décima edição da Bienal de Havana, encerrada no fim de abril; sinal dos tempos, pela primera vez em 20 anos artistas norte-americanos expuseram suas obras ao público cubano
Estão lotados e cada vez mais frequentes os voos entre Estados Unidos e Havana. Desde que Barack Obama liberou viagens de cubano-americanos à ilha e facilitou vistos para seus cidadãos, Cuba vive uma espécie de degelo pós-era Bush e tem no mercado de arte um sinal forte desses novos tempos.
Pela primeira vez em mais de 20 anos, a ilha recebeu uma exposição de artistas norte-americanos, parte da última Bienal de Havana, encerrada em abril. Atrás deles, vieram colecionadores estrangeiros que fizeram triplicar os preços das obras no mercado local e voltaram os olhos do circuito internacional para a ilha e seus artistas.
É uma guinada que jogou o país comunista, bastante isolado e com produção artística em grande parte ainda fraca e datada, no furacão do mercado global, ainda que por um instante.
Carlos Garaicoa, a dupla Los Carpinteros e Tania Bruguera, com projeção mundial tão grande quanto o valor de suas obras, são destaques de uma cena ainda tomada por arte decorativa, até ingênua, mas ajudaram a turbinar a venda de outros cubanos pelo mundo.
Seus colegas menos conhecidos, como Felipe Dulzaides e Abel Barroso, que estiveram na última Bienal de Havana, têm recebido convites para expor em Tóquio, Xangai e outros pontos distantes da ilha.
"A arte cubana já faz parte da linguagem global", diz Dulzaides, que hoje mora em San Francisco. "Muitos aqui nem têm internet, mas trabalhamos com galerias fora de Cuba", completa Barroso. "Não há colecionadores na ilha, então vendemos nossas obras para fora."
Mas é um boom ainda restrito ao mercado. No plano político, são tímidos os sinais de abertura mais ampla, como a decisão da Organização dos Estados Americanos de derrubar a restrição à entrada de Cuba no bloco, e promessas de Obama de normalizar relações com a ilha até o fim de seu mandato.
"Há um interesse renovado por arte cubana", disse à Folha Ben Rodríguez-Cubeñas, diretor do Cuban Artists Fund, em Nova York. "Temos agora uma possibilidade de restabelecer laços que se perderam."
Ele fala do governo Bush, que proibiu viagens e qualquer intercâmbio entre EUA e Cuba em 2004, rompendo com algumas exceções abertas no mandato do democrata Bill Clinton.
Na esteira desse isolamento, vem essa abertura ainda em fase embrionária. "Alguns artistas cubanos estão explodindo, os preços triplicaram", diz Sandra Levinson, do Center for Cuban Studies, em Nova York, que acompanha arte cubana há 40 anos. "A economia continua terrível, mas o mercado de arte continua de pé. É um sinal de novos tempos em Cuba."
Operações de limpeza
Ou quase. "É muito prematuro ainda para falar em grandes mudanças", diz Luis Miret, diretor da galeria La Habana, a mais importante de Cuba, à Folha. "Mas existe mesmo grande interesse por arte cubana."
"É uma produção que não se mede em preços", relativiza Sandra Ceballos, artista e dona da galeria Espacio Aglutinador, em Havana. "Essa produção contemporânea é fulminante, bate de frente e é cara porque é uma forma de arte visceral."
Tão fulminante e visceral que continua enfrentando censura. Se os tempos mudaram para o mercado, ainda é comum o cancelamento de exposições na ilha e perseguição a artistas. Ceballos teve mostras fechadas no ano passado, lembra outras três coletivas censuradas e diz ter sido alvo de uma circular do governo, com "acusações pessoais insustentadas".
"Não há liberdade de expressão em Cuba", diz ela. "Só operações de limpeza ante a opinião pública internacional."
"Arte serve para criar utopias possíveis"
Tania Bruguera brincou de roleta russa na abertura da Bienal de Veneza há um mês. Era um tiro em falso a cada página do manifesto que leu para poucos convidados, sem nada registrar. Também levou policiais a cavalo para dentro da Tate, em Londres. Em Havana, causou mais impacto quando deu um minuto ao microfone a cada pessoa que subisse ao pódio.
"Era uma ideia simples: dar ao público um minuto sem censura", lembra. "A arte funciona para criar utopias possíveis; essa deve ser a função do artista em qualquer lugar, mas em Cuba isso tem outro significado."
No caso, sua utopia possível era esse um minuto fugaz de liberdade de expressão. E esses minutos foram seguidos de um comunicado oficial da Bienal de Havana, que repudiou a forma como manifestantes se apropriaram da performance para veicular mensagens políticas. Era a resposta que ela precisava para concluir o trabalho.
Bruguera, que participa de um encontro em Porto Alegre, parte da Bienal do Mercosul, no fim do mês, é uma das artistas cubanas com maior projeção internacional. Suas performances falam quase sempre de um estado de exceção, criando um confronto entre uma normalidade opressora e alguns poucos e breves lampejos de paz.
"A censura faz parte da obra", diz Bruguera. "Se um artista faz bem o seu trabalho, perturba o poder econômico, a política."
Ela reconhece que na raiz de tudo está o isolamento da ilha onde nasceu, um cotidiano que para o resto do mundo aparece como anomalia. "Tento enxergar os absurdos, limites e propor outros mundos possíveis."
Sua obra vira espécie de termômetro do sentimento cubano. "Falo da passividade do povo, esse instinto de rebanho, de nunca se rebelar", afirma. "As pessoas em Cuba pensam uma coisa e dizem outra, por medo, por precaução. Misturam suas crenças e descrenças."
Tentando desfazer a confusão, Bruguera fundou em Havana a Cátedra de Conducta, escola de arte radical, que treinou artistas políticos e recebeu convidados estrangeiros pela primeira vez na ilha. Conta que isso só foi possível por causa de seu reconhecimento mundial.
"Se você consegue trazer prestígio para a ilha, acaba sendo mais valorizada pelo regime, mesmo que suas mensagens sejam contra eles", afirma. "Isso me deu liberdade para fazer coisas um pouco mais loucas, atrevidas. Se faço algo que não entendem, estou aprovada."
Mas não podiam não entender sua última performance na ilha. Uma pomba branca foi treinada para pousar no ombro de cada um que discursou ao microfone, repetindo uma célebre imagem de Fidel Castro e invertendo, num único gesto, as relações de poder em Cuba.
"O mais importante agora para Cuba é definir sua imagem", diz Bruguera. "A imagem de nós que existe há mais de 50 anos não mudou e acho que uma mudança só é possível se existir uma nova, que ainda precisamos cristalizar." (SM)
"A arte funciona para criar utopias possíveis; essa deve ser a função do artista em qualquer lugar, mas em Cuba isso tem outro significado. As pessoas em Cuba pensam uma coisa e dizem outra, por medo, por precaução"
"A censura faz parte da obra. Se um artista faz bem o seu trabalho, perturba o poder econômico, a política"
Tania Bruguera, artista plástica
A Arte de Cuba
A arte do Brasil, dos outros todos também.
Tudo que se cria é arte e ficamos nos nossos limites. O dos outros também o são. A questão é a convivência com o trabalho do artista. Mas se o governo, influência a cultura e sua produção, o obvio é que o autentico não passa de retrato do interesse do mesmo governo.
Já acabou a idéia de fronteiras culturais, pois a disseminação artística é pela vontade da natureza e não dos limites impostos pela ideologia retardatária de quem se acha.
Se o artista propuser algo que interessa aos poucos mandantes de qualquer lugar, esse trabalho só pode ser consumido por eles mesmos. Jamais por um mundo interado e globalizado.
Líbano Montesanti Calil Atallah
www.artponto.com