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junho 22, 2009
"O sofrimento latino é mais barroco" por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Matéria de Silas Martí originalmente publicada na seção Ilustrada do jornal Folha de S. Paulo, em 19 de junho de 2009.
Regina José Galindo, da Guatemala, mostra registros de suas performances sangrentas em exposição em São Paulo
Artista expõe trabalhos com a espanhola Pilar Albarracín e a brasileira Laura Lima a partir de hoje no Memorial da América Latina
Quando o ex-ditador José Ríos Montt se candidatou à presidência da Guatemala, Regina José Galindo conseguiu dois litros de sangue humano. Encheu uma bacia branca, banhou os pés de vermelho e deixou pegadas sangrentas entre a Corte e o Palácio Nacional. Foi a performance que deu projeção mundial à artista.
Junto de outro trabalho em que teve o hímen reconstituído numa clínica clandestina de seu país, Galindo ganhou o Leão de Ouro para jovens artistas na Bienal de Veneza em 2005.
Ela volta a expor na cidade italiana agora, em mostra paralela à Bienal, com "Confesión", vídeo em que é afogada por um capataz num barril de água. Seis registros de suas performances mais relevantes também estão expostos a partir de hoje, em São Paulo, no Memorial da América Latina, a primeira mostra da artista no país.
Ligando a dor e a exploração do corpo feminino a questões políticas, Galindo costuma sofrer em suas obras. É na tensão entre vítima e algoz que cria pontos dramáticos e de conflito, alternando entre os papéis de quem bate e quem apanha.
"Uma vítima de violência é vítima porque o permitiu até certo ponto", diz Galindo, 34. "Meus trabalhos têm uma tensão, em que o público acha que a artista é vítima, mas esses são papéis intercambiáveis."
Sua caminhada sangrenta, mesmo sendo alusão à dor latente, surge nas imagens com uma placidez estranha. Galindo parece ter sempre o comando da situação, deixando vazar a violência -com jorros de sangue- só nas notas mais agudas de suas composições visuais. "A anedota por trás de tudo enriquece a obra, mas é sempre um trabalho visual", diz ela.
Quando começaram a surgir cadáveres de mulheres mutiladas na Guatemala, Galindo respondeu com uma performance em que retalhava na própria coxa a palavra "perra". No vídeo, parece fazer os cortes como quem desenha sobre papel. "Se estou trabalhando com o corpo, tenho que saber do que ele é feito", diz Galindo. "É a ideia de marcas, cortes na pele, mas não me interessa a dor."
Tanto que abstrai o sofrimento. Em "(279) Golpes", obra sonora, não há sangue, nem cores. Só estalos agudos intercalados entre os versos de "Je Ne Regrette Rien", na voz de Edith Piaf. É disfarce para o som de chibatadas com um cinto de couro que ela desfere contra o próprio corpo com a mesma frieza dos cortes de "Perra".
Mesmo que a trilha sonora ou certo cinismo discreto possam quebrar o ritmo e baixar o tom, causando uma impressão até pueril, seus esforços resultam desconcertantes. Por mais ingênua e literal que seja "Limpieza Social", performance em que a artista nua é alvejada por um jato de água usado para conter manifestações, existe ali um frescor formal contudente.
Talvez pelo apelo dos músculos molhados depois do açoite, a pose agachada, inerte. Nesse ponto, a voz de Piaf e a nudez da artista dão o verniz da forma a uma obra que se recusa a ser só política, que busca, nem sempre com muito sucesso, romper com o panfletarismo simplório.
"Cansei de ser a artista do Terceiro Mundo que vem contar suas misérias, não quero ser exotizada", diz Galindo. "O sofrimento na América Latina é, de fato, mais barroco, mas me parece que o mundo está fodido igual em todas as partes."
Sofrimento flamenco
Do outro lado do Atlântico, Pilar Albarracín, que também tem trabalhos no Memorial, explora a dor espanhola. Ela busca nos estereótipos e clichês da mulher andaluz a embalagem plástica de suas performances. Numa delas, cava a própria cova e se joga lá dentro. Outro vídeo mostra um paso doble em que vai alfinetando o próprio corpo, manchando de sangue seu vestido branco de bailarina.
LAURA LIMA MOSTRA DUAS DE SUAS OBRAS
Além dos trabalhos de Regina José Galindo e Pilar Albarracín, a brasileira Laura Lima expõe duas obras no Memorial da América Latina. Estão lá "Dopada", performance em que uma mulher dorme, com ajuda de comprimidos, em plena galeria, e "Nômades", série de 12 máscaras cobertas com desenhos de paisagens.