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maio 19, 2009
Modernismo precário, por Marcelo Coelho, Folha S. Paulo
Matéria de Marcelo Coelho originalmente publicada no Caderno Mais do Jornal Folha S. Paulo, em 10 de maio de 2009.
Banal e mal pensada, obra do historiador Peter Gay decepciona ao tratar do movimento que influenciou decisivamente a cultura ocidental no século 20
Conhecido por sua biografia de Freud ["Freud - Uma Vida para o Nosso Tempo", Companhia das Letras], e seus grandes painéis sobre o Iluminismo e sobre a "experiência burguesa" no século 19, o historiador Peter Gay dedica as mais de quinhentas páginas deste livro (com mais de 80 notas, bibliografia e índice remissivo) ao modernismo -ou, como diz o subtítulo, ao "fascínio da heresia, de Baudelaire a Beckett".
O resultado é dos mais decepcionantes. Trata-se de um livro mal pensado em sua arquitetura, frágil na conceituação, com vários erros de acabamento e incolor, quando não banal, na sua escrita. O maior erro de Peter Gay é tratar cada arte -pintura, cinema, música- em capítulos separados. Poucas coisas são mais características da arte moderna do que a criação de movimentos estéticos (o surrealismo, o expressionismo) nos quais pintores, músicos e poetas compartilhavam de um projeto comum.
A estrutura escolhida pelo autor termina levando a um ziguezague cronológico que, abrangendo um período de 150 anos, não só se torna trabalhoso para o leitor, como também leva a algumas repetições na exposição.
Pior: tratando-se de um livro claramente introdutório, destinado, por exemplo, a quem nunca ouviu falar da palavra "móbile" ou desconhece o enredo de "Luzes da Cidade" [1931], de Chaplin, a falta de uma explicação coerente do que significaram os diversos "ismos" da arte moderna haverá de ser sentida pelo leitor.
É que, no fundo, a preocupação de Peter Gay não incide sobre os aspectos da linguagem, do programa estético, das inovações formais propostas pelos diversos artistas e correntes do século 20.
Pela bibliografia comentada que consta ao final do livro, vê-se que Peter Gay é, antes de tudo, um leitor de estudos biográficos, aparentando ignorar a imensa quantidade de textos teóricos já escritos sobre a arte moderna e mesmo algumas introduções didáticas ao tema que superam de longe o livro que ele acabou escrevendo.
Tornam-se quase vergonhosos, assim, os trechos que Peter Gay dedica ao "modernismo" de Orson Welles. O autor oferece um convencional resumo de "Cidadão Kane" [1941], sem dar atenção às ousadias de linguagem do filme.
Inscreve, ademais, os filmes de Chaplin na rubrica "modernismo". Mas este é um caso evidente em que o cinema foi antes fonte de inspiração para a vanguarda do que seu autêntico representante.
Se quisesse dar uma ideia mais precisa do modernismo no cinema, Gay poderia ter citado, por exemplo, "Um Cão Andaluz" [1928] de [Luis] Buñuel, ou "Um Homem com uma Câmera" [1929], de Dziga Vertov.
Naturalmente, apontar omissões em um livro panorâmico desse tipo pode parecer covardia.
Mas é difícil não reagir com espanto a um estudo sobre modernismo que mal toca em nomes como Apollinaire e Maiakóvski, na poesia, Pirandello e Brecht, no teatro, e Isadora Duncan, na dança, enquanto discorre longamente (privilegiando sempre a biografia) sobre Knut Hamsun e Gabriel García Márquez.
"Modernismo" é falho, ademais, no breve capítulo encarregado de contextualizar historicamente a arte moderna. Concentra-se nos fenômenos mais evidentes (a urbanização, o transporte ferroviário, a Primeira Guerra), sem retratar as revoluções científicas e filosóficas da época. Einstein e Bergson, Chklovski e Spengler, Mach e Husserl estão fora de seu ângulo de visão.
Freud, com certeza, é invocado. Pobremente: o autor identifica sinais de complexo de Édipo em Kafka e Strindberg.
Tem-se uma impressão de ainda maior amadorismo quando Peter Gay se refere às influências recebidas pelo "modernista" (?) Jean-Paul Sartre em sua filosofia. Resumiam-se, segundo o autor, "aos velhos escritos do teólogo dinamarquês Soren Kierkegaard".
Nada de Husserl e Heidegger, portanto, nesse autor que, depois de 1941, teria (erro de Peter Gay) se engajado na Resistência.
Pequenos erros desse tipo aparecem com irritante frequência. Confunde-se dodecafonismo com serialismo. O compositor russo Scriabin teria inventado "novas tonalidades". A famosa estreia da "Sagração da Primavera", de Stravinski, foi em 1913, e não em 1911, como assevera a pág. 25.
Mesmo as ilustrações do livro representam desserviço ao leitor. Uma foto do Museu Guggenheim de Bilbao traz junto, ostensivo na fachada, um filhote de cachorro gigantesco, obra do escultor Jeff Koons, que, na ausência de qualquer esclarecimento na legenda, pode ser confundida com a arquitetura do edifício.
A banalidade das legendas é, aliás, um capítulo à parte. Sob a reprodução de um quadro de Gustave Caillebotte, lemos: "Este óleo enorme é provavelmente sua tela mais famosa".
Uma foto de Samuel Beckett nos informa que sua obra, "décadas depois, permanece altamente controvertida".
Mais banalidades? Disso o livro está repleto. "Em suma, o que os teatrólogos do absurdo tinham em comum era o desafio de todas as convenções consagradas que o teatro usou irrestritamente ao longo dos séculos". Como se [o escritor francês] Victor Hugo não tivesse desafiado todas elas, antigas também, em 1830...
Sobre Marcel Duchamp, lemos que "uma coisa é certa: Duchamp estava absolutamente distante das convenções estéticas vigentes e adorava a originalidade".
O tom se torna piegas ao tratar de Franz Kafka: "Por mais que gostasse de escrever, porém, a escrita não tinha força suficiente para salvá-lo de si mesmo".
O que ler para entender o movimento
Quem quiser salvar-se de Peter Gay pode tentar muitos outros livros sobre o período. Modris Eksteins ("A Sagração da Primavera") e Roger Shattuck ("The Banquet Years") oferecem um retrato histórico vivo e integrado dos anos iniciais do modernismo. Perry Anderson, em "As Origens da Pós-Modernidade" [Jorge Zahar], traça hipóteses sociológicas sobre a arte moderna que Peter Gay não leva em conta e refina um conceito crítico que está ausente de seu livro recém-lançado.
Sobre a história da música no século 20, outro lançamento da editora, "O Resto é Ruído" [de Alex Rox], é um guia delicioso, preciso e brilhantemente escrito.
Sem contar o didático "O Castelo de Axel", de Edmund Wilson, os livros de Hugo Friedrich ("Estrutura da Lírica Moderna") e Marcel Raymond ("De Baudelaire ao Surrealismo") são belos guias para a literatura do século 20.
O ilustradíssimo livro de Giulio Carlo Argan ["Arte Moderna", Cia. das Letras], e os quatro volumes da Open University sobre pintura moderna ["Arte Moderna - Práticas e Debates", Cosac Naify], valem tudo o que Peter Gay poderia imaginar em termos de história das artes plásticas, se a fada do talento crítico o tivesse abençoado antes de escrever um livro tão infeliz. (MC)