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maio 12, 2009
O modernismo segundo Peter Gay por Antonio Gonçalves Filho, Estado S. Paulo
Matéria de Antonio Gonçalves Filho originalmente publicada no Caderno 2 do jornal Estado S. Paulo, em 10 de maio de 2009.
Autor reacende debate ao defender em seu novo livro que o 'fascínio da heresia', e não a ideologia, uniu os modernistas
O historiador judeu de origem alemã Peter Gay, hoje com 86 anos, tinha pouco mais de 10 quando escapou da Alemanha de Hitler, em 1933. Estabelecido nos Estados Unidos, dedicou sua vida a pesquisar a história que deixou para trás, produzindo estudos e biografias de personagens da cultura europeia, dos quais os mais célebres são um ensaio sobre o panorama artístico na República de Weimar e uma biografia de Freud. No entanto, seu mais recente livro, Modernismo (Companhia das Letras, tradução de Denise Bottman, 578 págs., R$ 64) dividiu os críticos, como atestam os textos publicados na página ao lado, do crítico e curador Teixeira Coelho e do historiador Francisco Alembert.
Acusado de eurocentrismo - por ter eleito apenas artistas, escritores, dramaturgos e músicos modernistas europeus, omitindo americanos e latinos - Gay defendeu-se antecipadamente das críticas que viria a receber escrevendo, no prefácio, que seu livro não é um estudo sobre o nascimento, crescimento e declínio do modernismo. Esta seria, segundo o historiador, tarefa impensável para um único volume - daí a ausência de grandes romancistas como Faulkner e Saul Bellow ou pintores como Willem De Kooning e Francis Bacon.
Numa história geral, teria de acomodar todo mundo. Em sua história particular, ele buscou apenas os traços comuns aos modernistas, dissociando-se da ideologia de seus contemplados, sejam eles o Nobel de Literatura Knut Hamsun, simpatizante do fascismo, ou o dramaturgo antifeminista August Strindberg, passando pelo ultracatólico poeta T.S. Eliot e outros pilares do modernismo associados a regimes totalitários (o futurista Marinetti, por exemplo). Gay defende que o liberalismo é o princípio fundamental do modernismo e faz de sua lista uma declaração de princípios, provando que a modernidade não é a pátria da democracia. Ao contrário. É o paraíso de autocratas como Picasso, bancados pelos burgueses sobre os quais destilou seu ódio.
Embora diga que não se arriscou a oferecer uma leitura psicanalítica do modernismo, o historiador, ao falar de Kafka, vai além de Freud e transfere para a arena da psicanálise a discussão sobre a obra do escritor. Seu diagnóstico: o autor de A Metamorfose era um edipiano desajustado, vítima do desamparo moderno provocado pela tirania do pai - celestial ou biológico. O fato de Kafka ser judeu e de tantos outros criadores judeus terem influenciado o modernismo poderia, então, conduzir a outras interpretações igualmente polêmicas? Gay é mais cauteloso nesse terreno minado, lembrando que não existe tal coisa chamada de "gosto judeu". Judeus ricos compravam tanto os acadêmicos dos salões como Picassos e resistiram às inovações de Schoenberg quase tanto como evitavam a revolucionária arquitetura da Bauhaus.
A rebelião modernista, ainda segundo Gay, tampouco foi esquerdista, embora tenha sido uma resposta ao mundo burguês. Regimes totalitários, defende, foram sempre hostis ao modernismo, do nazista - e a exposição Arte Degenerada, de 1937, é prova incontestável - ao comunista. Com relação ao último, ele dá um jeito de contornar o incontornável, omitindo o nome do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Gay discorda do crítico, também marxista, Georg Lukács, que decretou 1848 o ano da morte da ideologia burguesa. Lukács disse que a burguesia francesa não mais desempenharia um papel na progressista peça da modernidade. Gay diz o contrário: a primeira qualidade dos modernos é o que chama de "fascínio pela heresia". Artistas de origem burguesa provocam outros burgueses escandalizáveis e são por eles financiados. Não haveria, segundo ele, uma única ideologia política capaz de bancar ou explicar o modernismo.
Seja como for, Gay admite o ano da publicação do Manifesto Comunista - 1848 - como um marco, escalando o poeta francês Charles Baudelaire como o primeiro herói do modernismo. Alvo preferencial do ódio burguês, Baudelaire foi o herético encarregado de provocar a sociedade francesa, ao desprezar a poesia tradicional e expor suas taras sexuais em poemas profanos. O "subproduto degenerado" do modernismo, no entanto, teve ancestrais ilustres - o protomodernista Diderot, cita Gay, descartando a localização histórica do modernismo, que, segundo o mesmo, não acabou. Para provocar, ele diz que não sabe o que é pós-modernismo e conclui o livro chamando de "moderno" o "herético" arquiteto Frank Gehry. O que Bilbao pode fazer pelo modernismo? Nem Gay sabe. Diz que é historiador, não profeta - mas não hesita em culpar Duchamp por ter destruído a ideia de modernismo, ao afirmar que tudo pode ser arte, sonho que a arte pop, segundo ele, converteu em realidade.
Para Gay, o declínio do modernismo começou quando o público aceitou a provocação dos artistas pop - Warhol, em particular, por ter eleito tantos ícones do consumo como arte. Até então, a arte exigia uma sensibilidade mais "educada" (ou elitista), argumenta. Após Andy Warhol, vale tudo.