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abril 27, 2009
A Escolha de Sophie por Teté Ribeiro, Folha S. Paulo
Matéria de Teté Ribeiro originalmente publicada na Serafina no jornal Folha S. Paulo, em 26 de abril de 2009.
Ela é a artista francesa contemporânea mais pop do mundo. Estava apaixonada por um escritor também francês, autor de um livro dedicado a ela. Ele rompeu o romance por e-mail. Ela transformou o fora em arte. O resultado? É a exposição "Cuide de Você", em cartaz em Nova York e que chega ao Brasil em julho, junto com sua autora
"Recebi uma carta de rompimento. E não soube respondê-la. Era como se ela não me fosse destinada. Terminava com as seguintes palavras: Cuide de você. Levei essa recomendação ao pé da letra. Pedi a 107 mulheres, escolhidas de acordo com a profissão, para interpretar a carta do ponto de vista profissional.Analisá-la, comentá-la,dançá-la, cantá-la. Esgotá-la. Entendê-la em meu lugar. Responder por mim. Uma maneira de ganhar tempo antes de romper. Uma maneira de me cuidar."
(texto de apresentação da exposição "Cuide de Você", em cartaz em Nova York, que chega a São Paulo em julho)
Tudo começou assim: ela estava em Berlim e ouviu o bipe do celular avisando que tinha uma nova mensagem. Era um e-mail do namorado, amante, parceiro ou como você preferir se referir a um casal adulto que se relaciona romanticamente sem morar junto. Abriu para ler e descobriu que estava tudo acabado. Tinha sido trocada por outras. Sim, outras, no plural. Ah, mas ele a amava muito e só fazia isso porque ela havia imposto uma regra pouco razoável, do ponto de vista dele, segundo a qual não era permitido procurar outras mulheres enquanto os dois estivessem juntos. Como já havia procurado outras, e como ela era tão pouco flexível, sentia-se obrigado a romper o romance daquela maneira, apesar de sofrer muito com isso.
Se os sujeitos dessa história fossem pessoas comuns, talvez o desdobramento seria uma cena mais ou menos assim: crise de choro, desabafo com os amigos, bebedeira, telefonemas furiosos/tristes/chantagistas para o autor do e-mail, ressaca e uma depressãozinha que inevitavelmente passaria algum tempo depois. E fim.
Mas ela é Sophie Calle. E o pé na bunda virou a exposição "Cuide de Você", em que 107 mulheres interpretam, cada uma de acordo com sua profissão, o e-mail do rompimento. A maioria é desconhecida do público, foram escolhidas por suas profissões. Há filósofas, uma especialista em gramática, delegada, psicóloga, bailarina, uma atiradora de elite, uma taróloga, uma assistente social, uma criança de nove anos e uma carta escrita à mão por sua mãe, na qual ela diz "uma mulher linda, famosa e inteligente como você logo vai encontrar alguém melhor" -além de dois fantoches e de uma cracatua.
Mas tem gente famosa também, como as atrizes Jeanne Moreau, Maria de Medeiros e Victoria Abril, a compositora Laurie Anderson e a DJ Miss Kittin. Cada mulher - ou cracatua- foi fotografada ou filmada fazendo sua interpretação da carta. A exposição é cômica e dramática, catártica e exaustiva.
"Não fiz isso pensando em vingança", conta em entrevista à Serafina, em Nova York, no dia seguinte à abertura da exposição na cidade, há duas semanas. "Ao contrário, quando resolvi fazer um projeto artístico a partir do e-mail quis ter certeza de que o motivo por trás disso não era me vingar. Se a ideia não fosse artisticamente interessante não teria motivação suficiente para me dedicar tanto assim", afirmou, parecendo convicta.
Escrevo "parecendo" convicta porque Sophie Calle não se incomoda com o fato de ser algo contraditória. Ela diz coisas como: "meu maior medo é o de ser rejeitada, vivo esse pavor o tempo inteiro". Pouco depois, entra no estúdio improvisado na galeria pelos fotógrafos onde serão feitas as fotos que acompanham este texto e troca de roupa na frente de pelo menos quatro desconhecidos. Então me pergunta: "acha que eu preciso de maquiagem"
O jeito despojado dela me pega de surpresa. Quando aceitou o pedido de entrevista, tinha duas condições: uma, que eu visse a exposição antes de falar com ela. A segunda, que não queria ser fotografada. Logo Sophie, uma artista cuja obra é conhecida pela combinação de fotos e textos. Segundo sua assistente, ela gosta de ter controle sobre sua imagem e não estaria muito em paz com a aparência. Outra contradição, já que, aos 55 anos, mantém um jeito de menina e o corpo muito em forma -como eu, a dona da galeria, seu assistente, a diretora de arte e o fotógrafo pudemos ver. Várias vezes.
SE CUIDA
Sophie chegou para a foto com um vestido bege de seda emaranhado sob um suéter de lã, bota, meia-calça e um casaco de chuva, mas levava duas outras trocas de roupa dentro da bolsa, além de um sapato de salto. E trocou de figurino pelo menos quatro vezes no segundo andar da galeria, sem pedir privacidade nem ao menos checar em um espelho se o cabelo continuava em ordem.
Não foi tão desencanada com a tradução do título de sua primeira exposição individual a vir para o Brasil, primeiro no Sesc Pompeia, em São Paulo, entre 10 de julho e 7 de setembro, depois no Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador. "Ela contratou um tradutor para ter certeza de que o título seria fiel ao 'Prenez Soin de Vous', a última frase do e-mail original", conta a curadora Solange Farkas, da associação cultural Videobrasil, que realiza a turnê brasileira da exposição com o Sesc. Ficou "Cuide de Você", um pouco mais formal e mais carinhoso do que "se cuida".
A frase é fundamental na concepção do trabalho. "O e-mail não é nada especial, é um texto banal de uma pessoa que quer sair de uma relação, mas não sabe como dizer isso", diz Sophie. "Mas a frase final, 'cuide de você', é violenta, definitiva", continua. "E era exatamente o que eu tinha que fazer, cuidar de mim. E trocar o sofrimento por um projeto foi o meu jeito de me distanciar daquela dor", completa.
Misturar o que é público e o que é privado, assim como o observador e o observado, o autor e a obra, são marcas fundamentais no trabalho da artista. A sobreposição de textos e imagens é a forma que ela escolhe para apresentar seus pontos de vista, que mudam a cada trabalho, mas que acabam revelando uma proposta ousada de como se colocar no mundo, como musa e voyeur de sua própria obra. Até hoje, só teve problemas com os objetos de seus trabalhos mais anônimos uma vez, em 1983, quando encontrou uma agenda de telefones em uma rua de Paris.
Devolveu assim que pode para o dono, mas tirou cópia dos números e começou a ligar para as pessoas listadas na agenda e entrevistá-las a fim de construir um perfil daquele desconhecido sem falar com ele. Publicou as conversas em capítulos no jornal francês "Libération". O dono da agenda não gostou, processou a artista, que contra-atacou com a proposta de um acordo de paz. O homem disse que a única retratação possível seria ela publicar uma foto dela mesma, nua, no mesmo jornal. Sophie cumpriu sua parte, feliz da vida.
A NOBREZA IMPERA
A visita ao Brasil promete testar ainda mais seus limites artísticos e pessoais. No começo de "Cuide de Você", decidiu que iria proteger a identidade do autor do e-mail e em todas as fotos da exposição a mensagem termina sem assinatura, com um X no lugar do nome. Mas o segredo de Sophie foi tão preservado quanto sua decisão de não ser fotografada para esta revista. É que sua obra anterior é dedicada ao escritor francês Grégoire Bouillier, autor de dois livros. O último, um romance autobiográfico chamado "The Mistery Guest", lançado em 2006 e dedicado a ela, narra como começou o romance dos dois.
Grégoire Bouillier, 48, é um dos escritores convidados da próxima Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que acontece entre os dias 1º e 5 de julho. Assim como Sophie Calle. E lá os dois vão se encontrar pessoalmente pela primeira vez desde que o romance acabou. Mas, sendo ela quem é, um simples encontro privado não seria suficiente. Como a vida dela inspira sua arte, que por sua vez reflete a própria vida, Sophie e Grégoire vão participar de um debate aberto ao público. Tudo muito civilizado, com mediador, hora marcada, ingressos limitados e tradução simultânea para o português. Tudo muito nobre.
Vai ver é isso o que os franceses queriam dizer com "noblesse oblige".
Achei corajoso, impactante e catártico o conceito do trabalho. Veremos a exposiçao, assim poderemos dar um parecer mais justo.
Posted by: Del Pilar Sallum at maio 9, 2009 7:46 PM