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fevereiro 17, 2009

Diário, livro e abandono por Eduardo Jorge, Diário Catarinense

Matéria de Eduardo Jorge* originalmente publicada no caderno Cultura do Diário Catarinense, em 31 de janeiro de 2009.

O relato íntimo das anotações pessoais do artista Yuri Firmeza ganha as páginas do jornal e inventa a cidade

Querido Diário, – É assim que geralmente se inicia uma conversa íntima consigo mesmo e com a escrita. A pergunta em torno do íntimo e de um segredo vem junto de uma outra própria ao diário: como passar o íntimo, sobretudo um segredo, pelo gesto da escrita? Uma escrita presume um terceiro, mesmo que este ainda não se faça presente. O pensador francês Maurice Blanchot, em O livro por vir, estudou o caso curioso de um escritor chamado Joubert. Ele não escreveu nenhum livro. E, se ele não escreveu nenhum livro, pode ser chamado de escritor? Joubert, mesmo que nunca tenha escrito um livro, passou a vida se preparando para escrever um. Blanchot se ateve em seus estudos justamente ao que o escritor chamou de Carnês, cujo subtítulo era Diário íntimo de Joubert. E o que o pensador francês traça como um dos leitores-críticos destes carnês é que o Diário de Joubert, mesmo apoiado no seu dia-a-dia, não é um reflexo de seus dias, e, sim, aponta para algo diverso.

A pergunta insiste: o que significa escrever um diário? E, sem uma resposta imediata por mais simples que seja, entramos nas perguntas contidas no próprio diário de Joubert, especificamente no que ele escreveu no dia 22 de outubro de 1799: "Mas, de fato, que arte é a minha? Que fim ela se propõe? O que ela produz? O que faz com que ela nasça e exista? O que pretendo e quero fazer ao exercê-la? Será escrever e assegurar-me de ser lido? Única ambição de tanta gente! Será isso o que desejo?... É o que devo examinar atentamente, longamente, e até que eu o saiba". Joubert tinha 45 anos quando escreveu este fragmento.

Outro diarista compulsivo era o dramaturgo alemão Bertold Brecht. Seus Diários de Trabalho (Arbeitsjournal), alguns publicados no Brasil, possuem, de fato, muitas informações visuais e textuais do que se passava no mundo ao qual Brecht viveu. Seus diários, a grande maioria escrita em situação de exílio, são, também, relatos de um viajante que viveu perseguido, como o que foi escrito em 17/4/1940: "Para a Finlândia de navio, deixando para trás móveis, livros, etc." Ou, de vez em quando, o encontro com outros exilados, como o filósofo alemão Walter Benjamin, escrito em 25/7/1938: "Benjamin está aqui. Está escrevendo um ensaio sobre Baudelaire. Há boas ideias no texto." O dramaturgo alemão, dentro de seu vasto material dos diários, ainda escreve em 20/10/1942, agora nos Estados Unidos: "Uma coisa que gosto de fazer é aguar o jardim." Somos terceiros a ler estas anotações. Fazendo desta escrita confessional, que se comporta dentro dos diários, algo público, mesmo que pesquisadores e editoras já tenham feito uma mediação. E, além de Joubert e Brecht, diversos escritores tiveram publicados seus diários. A vontade de conhecer um segredo, de desvendá-lo, de entrar no espaço íntimo do outro é algo que faz parte da natureza humana? Ler um diário íntimo é o momento no qual a leitura pode ser considerada um ato de violação?

Mais perguntas e outro desvio. Durante o ano passado, o Museu da Pampulha realizou mais uma edição do seu programa para artistas residentes chamado de Bolsa Pampulha. Dentre os artistas selecionados, um deles, Yuri Firmeza, ocupou as páginas do jornal Estado de Minas durante cinco meses, com uma proposta de escrita que concluía seu trabalho em Belo Horizonte com um diário. Na pequena edição de Ecdise, título do livro, as datas, as do jornal e as do diário, se misturam para que o artista desenhe e se desenhe na cidade, como no texto de 9/8/2008, publicado no Estado de Minas: "Pensar minha estada na cidade como sendo a minha intervenção no espaço público. Criar esse espaço por meio, justamente, das relações que invento com 'a cidade'. Chegar a Belo Horizonte, amassar e moldar pão de queijo com a Anita, conversar sobre os mexilhões dourados com a bióloga Mônica Campos, dialogar com os motoristas de táxi na tentativa de entender o fluxo da capital, ir ao festival de cinema de Tiradentes, conversar com os travestis da Afonso Pena à procura de alguma Yuri, aprender a tocar flauta, ir a Patos de Minas, conversar sobre meus trabalhos com os alunos da Escola Guignard, escrever diário, andar com mapa no bolso, dar oficinas, seguir carteiros, ir a Lagoa Santa, ziguezaguear no Opala do Pablo, ir às reuniões de condomínio, fazer performances, comer doce de leite, ir ao museu, fazer piquenique no Parque das Mangabeiras, encontrar-me com os outros bolsistas, ir a Ouro Preto, conhecer pessoas na rua, desenhar a cidade, desenhar na cidade, desenhar-me na cidade."

O desafio para Yuri Firmeza, como um artista-residente-viajante, é abrir o mapa de Belo Horizonte e, ao olhar para suas linhas e cores, sair desses contornos para entrar na cidade, na vida de vários moradores, na conversa, na convivência diária. O Diário de Yuri, lançado no final do ano passado, quando os artistas residentes do Museu da Pampulha concluíram o seu período de estada, não tem todas as datas fixas e está intercalado com páginas do jornal, justamente uma seleta de seus textos publicados. Yuri levou o jornal, logo, o público, para dentro do diário, o espaço íntimo – Brecht também o fez à sua maneira. Divisão, esta, constantemente alterada, rasurada, a cada dia impossível de conter, como se pode ler na anotação sem data do diário de Yuri: "Hoje tentei conter algumas coisas. Elas me transbordaram."

O desafio para Yuri (e não só para ele) é justamente fazer da vida um diário com muitos encontros casuais. Como a fez, também, Brecht, cuja anotação de 2/8/1945 registra um desses encontros: "Encontro Schönberg à porta de uma drugstore. Ele se queixa de suas enfermidades e da legislação dos direitos autorais, já que seu filho deixará de receber esses direitos ao completar 28 anos." Fazer um diário que inclua bons encontros, conversas, é um gesto político, como também foi a escrita de Joubert, sem deixar um único livro, como ele próprio escreveu: "Não acabamos quando paramos ou quando declaramos ter terminado." Ou na conversa do Diário do Yuri, que, junto com Joubert e Brecht, nos convida a pensar os prolongamentos do gesto da escrita, seu próprio abandono:

"– O que vai fazer quando as folhas acabarem? – perguntou o Diário.

– Vou continuar fazendo, só que sem as folhas – respondeu".

* Poeta, autor do Caderno do Estudante de Luz (Lumme Editor) e San Pedro (edição do autor). Mestrando em Teoria da Literatura na UFMG

Posted by Ana Maria Maia at 2:47 PM