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fevereiro 4, 2009
O pacto entre o grafiteiro e o gravurista na terra do cordel, por Paula Alzugaray, Revista Isto É
Matéria de Paula Alzugaray, originalmente publicada na Revista Isto É edição 2044, no dia 14 de janeiro de 2009
Exposição no Recife revela a presença da xilogravura popular na obra do gravador Gilvan Samico e do grafiteiro Derlon (Narrativas em madeira e muro / Espaço Cícero Dias – Museu do Estado de Pernambuco, Recife/ até 18/01)
O que a xilogravura e o grafite podem ter em comum?
O imaginário nordestino, com seus costumes e lendas fantásticas, narrados pela literatura e pela xilogravura de cordel. O traçado simples, que ilustra a vida sertaneja com encanto e eficácia, é o tema de Narrativas em madeira e muro, exposição que aponta para a influência da xilogravura popular na obra dos artistas Gilvan Samico e Derlon Almeida. A mostra inaugurou o 47º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco e promove uma espécie de repente entre esses dois pernambucanos de diferentes trajetórias e gerações.
O encontro é descrito por ambos como inusitado e interessante. Aos 80 anos, Samico vê as xilogravuras que realizou na década de 60 – quando a influência do cordel fez-se mais afirmativa em seu trabalho – em franco diálogo com os grafites de Derlon, de 23 anos. “Por que não? Meu trabalho pode ter uma afinidade com o dele, bebemos na mesma fonte da gravura popular. É uma experiência válida e um resgate do espírito da literatura de cordel”, diz Samico. Por sua vez, Derlon, que tem se destacado no panorama do grafite por substituir a usual relação com o hip-hop pela citação à iconografia popular nordestina, reverencia seu interlocutor. “A miscigenação dessas linguagens permite novas leituras. Conhecer o Samico estimulou meu trabalho. E acredito que ver o grafite como arte também foi bom para ele”, diz o jovem artista.
Se o grafite é uma manifestação urbana, o trabalho de Derlon imprime à estética do cordel uma qualidade própria da vida na cidade. O artista apresenta na exposição as pinturas em papel jornal que costuma colar nos muros da cidade, um grande mural inédito e fotografias de suas grafitagens em muros de Olinda e do Recife.
“Seu trabalho lembra as ilustrações do J. Borges. Derlon transporta aquelas gravuras para um suporte novo e aos poucos vai encontrando uma identidade própria”, diz Samico, que renovou a gravura brasileira ao aproximar a tradição nordestina da linguagem expressionista que aprendeu com os mestres Oswaldo Goeldi e Lívio Abramo – de quem foi aluno nos anos 1950. A associação ao cordelista J. Borges é um atestado de qualidade para o grafiteiro. Mas, tanto nos desenhos de um quanto nas gravuras do outro, é possível vislumbrar os temas das xilogravuras de J. Borges, o contador de histórias mais cobiçado de Pernambuco, que certa vez declarou a um documentarista: “Gosto de escrever mentira. A mentira é que me alimenta, consigo viver dela. Mas mentira com fundamento. Mentira que tenha condição de ter acontecido, de estar acontecendo ou de futuramente acontecer.”
Colaborou Fernanda Assef
Roteiros
Era uma casa muito engraçada
Saudade/ Fundação Eva Klabin, RJ até 18/1
José Bechara – Sobremirada/ Lurixs: Arte Contemporânea, RJ/ até 17/1
À entrada da Fundação Eva Klabin, a casa que pertenceu à colecionadora Eva Klabin até sua morte, em 1991, e que guarda um acervo de 50 séculos de história da arte, temos a sensação de que algo está fora de ordem. No salão principal, os sofás organizam-se em ziguezague e uma escada de serviço impede o acesso à cristaleira, em plena sala de jantar (foto abaixo). Dentro do quarto, no andar superior, uma estante está despencada no chão, esparramando roupas, chapéus e sapatos sobre os tapetes kilin de Eva. Em toda a casa do bairro da Lagoa, no Rio, objetos pessoais ocupam lugares esdrúxulos e próteses brotam em cantos inesperados. Essa espécie de poltergeist que parece ter tomado conta da casa chama-se, na realidade, Saudade, e trata-se de uma intervenção do artista José Bechara, convidado da nona edição do Projeto Respiração, que estabelece uma ponte entre o acervo clássico da fundação e a arte contemporânea. Segundo o artista, a desordem é o sintoma do “desamparo” da casa diante da ausência de sua proprietária. “A casa desperta o imaginário literário dos artistas”, afirma o curador Marcio Doctors, autor do Projeto Respiração. “Os artistas são convidados a se relacionar não só com a casa e a coleção, mas com a personagem Eva Klabin”, diz ele.
Os móveis da colecionadora adquirem vida aos olhos de Bechara, mas sua experiência com objetos domésticos “animados” começou muito antes, em 2002, no projeto A casa, durante uma residência artística no Paraná. Nesse trabalho, o artista transformou a casa que estava ocupando em uma escultura de grandes dimensões, que cuspia seus móveis portas e janelas afora. De lá para cá, essas operações de exorcismo de armários, colchões, mesas, poltronas, etc. ganharam diversas versões no trabalho de Bechara. A escultura Cega, em alumínio fundido (foto acima), é o mais recente desdobramento dessa série, em cartaz na individual do artista da galeria Lurixs: Arte Contemporânea, no Rio.