|
dezembro 22, 2008
Ódio a pichadores me deixou tanto tempo presa, afirma jovem, por Laura Capriglione, Folha de São Paulo
Caroline Pivetta da Mota, 24, ficou 54 dias detida por pichar a parede do "andar vazio" da Bienal de São Paulo
Matéria de Laura Capriglione, originalmente publicada na Folha de São Paulo, no dia 20 de dezembro de 2008
Única presa na ação, garota diz que raiva da sociedade é causada pelas "malditas pessoas que picham um muro branco"
Caroline Pivetta da Mota, 24, ganhou ontem a liberdade, depois de 54 dias de prisão. Ela chegou a chorar ao se despedir da condenada por assalto a mão armada com quem dividiu uma cela na Penitenciária Feminina de Santana (zona norte de São Paulo).
Saiu com uma micose que lhe provoca coceiras pelo corpo todo, "culpa da sujeira daquele lugar", e com a convicção de que sua prisão prolongada foi decorrência do ódio que a sociedade dedica aos pichadores, causado pelas "malditas pessoas que picham um muro branco". Como é que é?
Caroline, 20 tatuagens espalhadas pelo corpo, incluindo uma caveira entre os seios, piercing no nariz e na língua, baixinha, 1,55 metro, cabelos vermelhos, sobrancelhas recém-depiladas e risonha de felicidade ontem, foi um dos 40 jovens que, no dia 26 de outubro, picharam o andar vazio do prédio projetado por Oscar Niemeyer no parque Ibirapuera, onde acontecia a 28ª Bienal Internacional de São Paulo. Ela foi a única presa.
Caroline diz que foi agarrada pelos seguranças, jogada ao chão, xingada. Novata no mundo da pichação, a garota chegou a ser apresentada como liderança do grupo. Ela nega: "Eu só fiquei sabendo da ação na quinta-feira, três dias antes".
O advogado Augusto de Arruda Botelho Neto, que assumiu o caso da jovem, diz que ela foi vítima de um "equívoco".
"Nem o Fernandinho Beira-Mar, se fosse pego pichando um muro, receberia a pena que ela já recebeu. O Ministério Público denunciou a Caroline pelo crime de destruição de um bem protegido por lei, quando deveria tê-la denunciado pelo crime ambiental de pichação. Já seria um erro. Há mais. Também não se aplica a "destruição". O muro pichado por ela foi pintado e continua lá. Não houve destruição nenhuma."
Para Carol Sustos, como é conhecida entre seus camaradas de spray, a pichação na Bienal tinha o objetivo de "chamar a atenção para esta arte marginal". Ela provoca: "Por que é que se aceita que uma pessoa exibindo-se nua [refere-se ao artista Maurício Ianês] seja uma forma de arte e uma parede com algumas letras e siglas não possa ser?"
Aristocrata
Carol Sustos é uma legítima representante da aristocracia dos pichadores, os que atacam prédios (quanto mais altos, melhor), admirados por seus pares pela coragem e ousadia. Como tal, nutre uma espécie de desprezo pelos pichadores do chão. "Eu detestaria que alguém fosse lá pichar a parede da minha casa. Se eu quisesse um muro sem qualquer cuidado, eu teria deixado sem qualquer cuidado. Mas não, eu pintei de branco. É lógico que vou ficar com raiva se alguém descaracterizá-lo", surpreende.
Para a garota, rara representante feminina na categoria dos pichadores, o encanto da pichação de prédios (ela admite o ataque a 37) vai muito além do registro com spray naquela caligrafia peculiar.
"Eu gostava da dissimulação. De passar pela portaria, o porteiro me perguntar onde eu iria, eu despistá-lo e entrar, subir até o ponto mais alto, abrir a porta ou a janela e, lá em cima, olhar o céu, sentir o vento, ver a cidade de longe, em paz e em silêncio. É lindo. Deixava a minha vida muito mais contente", diz a pichadora.
Ela terá de deixar essa beleza de lado. Sabe que, se pichar, volta para a cadeia, o que não quer. Vegetariana por compaixão dos animais, Carol sofreu com a dieta da cadeia. "Tu sabes, a comida lá era triste", diz. "Aliás, aquele lugar inteiro era muito triste, 3.000 mulheres que não têm direito nem a um ginecologista; baratas, mofos e ratos por todos os lados."
Carol chegou a participar de uma "rebelião pacífica" com suas colegas de cana. Naquele dia, nenhuma presa trabalhou, ou comeu. Ficou todo mundo fora das celas até as 23h. O protesto foi pela melhoria, entre outras coisas, da alimentação.
Ontem à tarde a jovem ainda não sabia onde dormiria. Durante a prisão, ela perdeu o apê em que morava, por falta de pagamento do aluguel.
Sem um real no bolso, Carol quer retomar o trabalho como artesã e morar no centro da cidade. Por enquanto, jura, ficará longe das latinhas de spray.
Para ex-ministro da Justiça, punição foi "draconiana"
Matéria de James Cimino, originalmente publicada na Folha de São Paulo, no dia 20 de dezembro de 2008
Os 54 dias em que a gaúcha Caroline Pivetta da Mota ficou presa são considerados, na opinião de especialistas ouvidos pela Folha, uma penalidade excessiva e equivocada.
"Ainda que ela fosse a primeira pichadora de São Paulo, não há justificativa para tamanho rigor. A impressão que dá é que ela foi pega como bode expiatório, e isso extrapola os limites da lei", diz o ex-ministro da Justiça do governo Fernando Henrique José Gregori, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Cidade de SP.
Para ele, "a Justiça foi de uma severidade draconiana".
Opinião semelhante tem o advogado David Rechulski, especialista em crimes ambientais: "É claro que ela cometeu um ato criminoso, mas essa conduta caracteriza um crime de menor potencial ofensivo".
Segundo ele, a denúncia contra ela está tipificada erroneamente. "De acordo com a denúncia feita pela Promotoria, o crime cometido por ela fere o artigo 62 da lei 9.605, que versa sobre destruição de bem protegido por lei. No entanto, há um artigo específico sobre pichação, o 65, na mesma lei e cuja punição é bem mais branda."
Rechulski diz que "é um absurdo" a jovem permanecer tanto tempo presa. "Seria mais apropriado que ela fosse condenada a pintar as pichações da Bienal, já que a finalidade da pena é não apenas ser punitiva mas também educativa."
Além disso, diz o advogado, "ela não é uma criminosa violenta que deva ser segregada da sociedade e exposta à influência de criminosos de alta periculosidade em um presídio".
A reportagem entrou em contato com o Ministério Público Estadual, mas a promotora responsável pelo caso da jovem não foi localizada até o fechamento desta edição.