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outubro 27, 2008
Arte escorregadia, por Rosane Pavam, Carta Capital
Arte escorregadia
Matéria de Rosane Pavam, orginalmente publicada na Carta Capital no dia 24 de outubro de 2008
O visitante depara com as performances do pavilhão, passa pela catraca na altura da rampa, percorre o primeiro andar onde há vídeos, biblioteca e serviços e alcança o segundo andar vazio. Caminha por ele e chega ao terceiro andar. Lá, relaciona-se com instalações, pinturas e esculturas e ganha o prêmio final neste ciclo de divertimentos. Por um tubo imenso e externo ao prédio, escorrega até o térreo de novo, onde artistas dançam, cantam, interpretam e celebram a 28ª Bienal Internacional de São Paulo.
A organização do evento, que começa no domingo 26 com 42 artistas de 21 países e segue até 6 de dezembro, espera a atitude festiva de seu público. Gratuita, a Bienal transparece vocação popular, de combate a uma tendência numérica observada nas suas últimas edições. Em 2006, foram 535 mil visitantes, ante os 917 mil de 2004 e os 670 mil de 2002, quando o evento ainda cobrava ingresso.
Ana Paula Cohen, curadora-adjunta desta edição, formada em Artes Plásticas pela Universidade de São Paulo, profere as palavras com cautela e um sem-número de interdições. O rigor dessa acadêmica de 32 anos parece excessivo, dada a natureza do evento, intitulado em vivo contato e com o propósito simples de aproximar o público. O térreo da Bienal virará uma praça onde o povo se encontrará e exercerá “fricções”. O restante do prédio ficará destinado a “interações”.
Em 1975, o escritor Tom Wolfe escreveu A Palavra Pintada para mostrar como o conceito dominou a arte depois do impressionismo. Segundo Wolfe, o crítico tomou o lugar do artista, ou se tornou ele próprio. Neste formato, a palavra precede, forma e suplanta a obra, o que transformaria o curador, vezes várias, em uma espécie de falador. Antigamente, a curadoria apenas cuidava para que um acervo de museu não se deteriorasse. Agora, determina, com raciocínio que pode parecer brincante, mas é articulado, por onde a arte caminhará.
Ana Paula surge certeira em suas palavras. Não quer, por exemplo, que chamem de contemplativo o prestigioso terceiro andar que prepara, no qual as obras de 26 artistas de todo o mundo, 13 deles brasileiros, refletem sobre a história da Bienal de São Paulo sustentados pelo mobiliário do colombiano Gabriel Sierra. “Tudo o que desejamos é um público menos contemplativo para este evento”, disse em entrevista por telefone, na segunda-feira 20.
A contemplação está na base da arte, mas, se Ana a rejeita, é porque a associa à passividade. Como ficar indiferente, diz, a um coletivo de estilistas, artistas plásticos, designers e ilustradores como o avaf, assume vivid astro focus? De nacionalidades múltiplas, os performáticos (Ana prefere dizer performer artists) espalham adesivos coloridos, grafites e pichações pelo ambiente expositivo, se deste modo se pode chamá-lo. É natural que esperem do público alguma agitação em troca.
Qual seria a razão, contudo, para que os curadores nos desejassem sempre agitados?
Depois de tamanha troca de energias entre o artista e o público no térreo, talvez fosse natural aguardar a quietude dos observadores no terceiro andar. Lá eles estarão diante de obras que relêem itens do arquivo histórico Wanda Svevo. Não parece estranho, por exemplo, contemplar uma peça do brasileiro Iran do Espírito Santo. O artista faz com que olhemos não o interior de um quarto, mas nossa própria imagem em uma fechadura. “Contemplar significa ver com atenção e, sobretudo, especular. Nada há de passivo nisso. Pelo contrário: é ação que requer enorme empenho”, acredita o professor Teixeira Coelho, curador-coordenador do Masp. Para ele, trata-se do exato oposto da “impaciência visual” anotada pelo crítico Harold Bloom em feiras de arte, bienais e em toda a cultura visual de nossos dias. Teixeira observa uma curiosidade: “Para a cultura da impaciência de hoje, é preciso remover o obstáculo, skandalon em grego, e o escândalo parece ser, para muitos, a contemplação”.