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outubro 27, 2008
Bienal paralela, por Silas Martí, Folha de São Paulo
Bienal paralela
Matéria de Silas Martí, originalmente publicada na Folha de São Paulo no dia 26 de outubro de 2008
Grande mostra off-Bienal, a Paralela será aberta hoje com trabalhos de 61 artistas de 11 galerias em galpão reformado do Liceu de Artes e Ofícios, em SP
Logo na entrada do galpão reformado para receber a exposição Paralela, está uma foto do segundo andar do pavilhão da Bienal, vazio como ficará durante esta edição da mostra. É um elo quase irônico entre a exposição monumental no Ibirapuera -que, com a crise, teve sua escala reduzida- e a reunião de obras de 61 artistas de 11 galerias paulistanas, que ocupam este espaço da cidade até agora vazio -os galeristas por trás do evento reformaram os galpões do Liceu de Artes e Ofícios, construído em 1912 e desativado desde 1990, que recebe a partir de hoje a mostra.
Mas não é bem o vazio que ocupa a Paralela, e sim a idéia de uma ausência como motor, a influência do espaço sobre o artista. "Eu refuto a idéia de Bienal do Vazio, que é, na verdade, um gesto muito cheio", afirma o curador da Paralela, Rodrigo Moura. "O segundo andar do pavilhão é o lugar mais importante da arte brasileira no século 20. Deixar aquilo tudo vazio é um "statement" [afirmação]."
Da mesma forma que, vazios ou não, as cidades, os prédios e as paisagens conseguem dar fôlego e sufoco às obras dos artistas na Paralela, principal mostra do circuito off-Bienal, neste ano em sua quarta edição. E essas obras falam da relação com a arquitetura, da vida dentro dos espaços projetados e do que fazer quando nada mais importa, a festa acaba e a poesia escorre pelo ralo.
Junto da entrada, Renata Lucas instalou um tapete verde, grande demais para o espaço e, por isso, enrolado em enormes ondas aveludadas, que ligam o lado de fora ao de dentro do galpão, como se anunciassem tudo que segue como a interpretação de cada artista desse espaço cru, seco e sem retoques.
É uma poça viscosa de óleo negro que reflete, aliás, teto e paredes do Liceu. Nuno Ramos esculpiu no chão uma gravura de Oswaldo Goeldi e encheu de óleo os vãos em baixo relevo. "O que é preto no desenho vira óleo, e o que é branco fica chão", descreve Ramos. "É um mundo solar por fora e outro triste por dentro."
E são as janelas do Liceu objeto de outras duas obras: Lúcia Koch separa o galpão do edifício anexo reconstruindo padrões e treliças sobre aberturas que já existiam, enquanto Nicolas Robbio toma imagens dos vitrais geométricos do prédio e as projeta justapostas entre quatro paredes, como se tornasse vivas as "Fotoformas" do concretista Geraldo de Barros.
Arquitetura íntima
E a vida, de fato, resiste à aridez do galpão. Brígida Baltar faz um jardim suspenso com plantas que crescem dentro de tijolos trazidos de sua própria casa para uma sala do Liceu que recebe luz natural. "A gente esquece que o tijolo é terra pura", lembra a artista. "O trabalho fala dessa coisa viva dentro do espaço, uma arquitetura íntima."
Essa intimidade solitária também consegue resumir a obra de Sara Ramo, que arruma e desarruma objetos de um banheiro, numa alusão ao mesmo tempo lírica e irônica à rotina corroída pelo tédio e à falta de propósito, sensação que se alarga com o passar das horas.
Parece ser a mesma elasticidade temporal que faz do trabalho de Thiago Rocha Pitta uma obra viva, que se forma diante do observador: uma calha que derrama cristais de sal sobre uma tela, formando manchas de nuvens e chuva -uma espécie de tempestade abstrata.
Mais literal e estática, Márcia Xavier monta um paredão com 600 garrafas d'água em plástico transparente, que separa o galpão da continuação da mostra num prédio anexo. É um dilúvio interrompido, que serve de preâmbulo à violência melancólica que fecha a exposição.
Sem água, 2.000 barquinhos de papel dobrado da artista Sandra Cinto encalham numa onda seca sob uma mesa. Na mesma instalação, um desenho de ondas do mar esconde a reprodução que a artista fez do quadro "A Balsa da Medusa", do romântico francês do século 19 Théodore Géricault, a imagem trágica de cadáveres num barco em frangalhos.
É a mesma violência, um tanto escondida, é verdade, das trouxas ensangüentadas de Artur Barrio, aqui mostradas em 48 fotografias e um filme em 16 mm. Na última sala da mostra, um vídeo de Rivane Neuenschwander mostra formigas que mastigam pedaços de carpaccio na forma do mapa-mundi -e o mundo dos artistas se reconstrói neste espaço paralelo.