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abril 4, 2008
"Produtor de teatro que não reaplica é imoral", entrevista de Celso Frateschi a Raphael Prado, Terra Magazine
"Produtor de teatro que não reaplica é imoral"
Entrevista de Celso Frateschi a Raphael Prado, originalmente publicada na Terra Magazine no dia 3 de abril de 2008
Mudar ou não mudar. Eis a polêmica.
Hoje principal fonte de captação de recursos culturais do País, a Lei Rouanet está sob discussão fervorosa entre produtores culturais, artistas e governo. No entendimento da Funarte (Fundação Nacional de Artes, órgão do ministério da Cultura), a lei precisa ser revista para "corrigir distorções".
No modelo atual, empresas patrocinam atividades culturais - qualquer uma delas, como teatro, dança, cinema, artes plásticas etc. - e podem deduzir do imposto de renda até 100% do valor investido. A Rouanet, ou Lei de Incentivo à Cultura, foi criada em 1991, durante a gestão de Fernando Collor na presidência da República.
A discussão sobre o mecanismo de renúncia fiscal esquentou ainda mais depois de um artigo publicado na Folha de S.Paulo e assinado pelo presidente da Funarte, Celso Frateschi, e o secretário-executivo do ministério da Cultura, Juca Ferreira. No texto, eles defendem que a atividade cultural "diminuiu, pelo menos em termos relativos", depois de quase 20 anos da Lei Rouanet.
Em entrevista a Terra Magazine, o presidente da Funarte reitera seu desejo de mudar a legislação. Ele diz que não é contra a Lei Rouanet nem o modelo de renúncia fiscal, mas que esse sistema impede o desenvolvimento de produtores independentes:
- ... uma empresa estatal ou uma organização não-governamental ligada ao governo tem muito mais poder de barganha do que o produtor independente. A Sabesp não vai aplicar no grupo independente. Vai aplicar na Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) ou na TV Cultura - analisa Celso Frateschi.
O presidente da Funarte critica ainda o destino que é dado ao dinheiro levantado via renúncia fiscal e que não é reinvestido na Cultura. Para ele, essa prática "imoral" tem que ser alterada.
- (O produtor) consegue levantar R$ 2 milhões para fazer o espetáculo mas não está previsto como ele vai recuperar esses R$ 2 milhões. No caso da lei, ainda é mais grave. Os grandes produtores não reaplicarem o dinheiro é... imoral.
Segundo o presidente da Fundação, as propostas do MinC - que devem ser apresentadas assim que forem "ultimadas internamente, no ministério" - incluem um teto para as produções e a adoção de financiamentos a juros baixos. De acordo com Frateschi, as mudanças não ocorrerão via regulamentação, mas serão apresentadas como projeto de lei no Congresso Nacional.
- A gente precisa organizar a Lei Rouanet, tirar o peso dela, pactuar com os Estados para que não utilizem a Lei Rouanet, para que tenham recursos próprios.
Leia a entrevista com o presidente da Funarte:
Terra Magazine - O senhor e Juca Ferreira assinaram um artigo falando sobre as regras atuais da captação de recursos e propostas para a melhoria, mas que não ficaram muito claras no texto. E geraram um levante de produtores culturais contra o artigo. Que propostas são essas?
Celso Frateschi - Teve um levante contra e um levante a favor. Muitos grupos têm se solidarizado nessa perspectiva de uma renovação dos critérios. Eu acredito que as propostas que a gente tem são de extremo interesse dos produtores independentes. Quem despertou tudo isso foi a proposta de Lei Geral do Teatro, que está tramitando nas comissões do Senado. Nós demos uma opinião alertando os produtores, principalmente os independentes. Esse mecanismo de renúncia fiscal, do jeito que está sendo aplicado, e é o paradigma que está sendo proposto para a lei futura também, tende a prejudicar cada vez mais o produtor independente de atividade teatral.
Mas pragmaticamente, essas propostas de que se fala no artigo já estão pensadas?
A gente tem esse desenho pronto, que está sendo ultimado agora, internamente, no ministério, para poder jogar para a sociedade. A nossa análise é que a Lei Rouanet tem só um problema: é a única. Ela não é ruim em si, ela não tem problemas em si. Mas ela é o depositário de todos os interesses. O que a gente percebe que ficaram bravos com a gente é que estamos mexendo com interesses e interesses muito poderosos. É R$ 1 bilhão que gira a Lei Rouanet. Mas se você analisar, dos 50 maiores captadores, 80% deles são sociedades sem fins lucrativos, Oscip's (NR: organizações da sociedade civil de interesse público, antigas ONGs), fundações, instituições ligadas ao sistema bancário. TVs Públicas captam, orquestras sinfônicas, teatros... se criou um mecanismo nos entes federativos, estados e municípios, que criam associações que captam da Lei Rouanet e desobrigam o Estado de captar. O que a gente tem alertado os produtores, e eles devem sentir isso, é que uma empresa estatal ou uma organização não-governamental ligada ao governo tem muito mais poder de barganha do que o produtor independente. A Sabesp não vai aplicar no grupo independente. Vai aplicar na Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) ou na TV Cultura. O que a gente gostaria é de tirar esse peso da Lei Rouanet e deixá-la mais dentro do apoio do produtor independente. Que é o que a gente acredita que pode fazer uma economia teatral mais forte.
E de que maneira isso poderia ser feito? Porque é óbvio que o interesse do patrocinador é a maior projeção publicitária dele.
Em última instância, quem dá o dinheiro é o governo, através da renúncia fiscal. Não é o patrocinador. Hoje isso não é levado em consideração. Parece que a pessoa que renuncia está colocando dinheiro da empresa. Não, é uma opção da empresa. Mas o dinheiro é o que iria para o imposto.
Então vocês criariam um mecanismo que o próprio governo captaria os recursos e distribuiria o dinheiro?
Não, eu acho que poderia ser uma forma de regulamentar, primeiro por teto. É impossível a gente continuar sendo obrigado a financiar espetáculos com valor exorbitante, em que o produtor não tem nenhum risco. Não é isso que o produtor independente quer. Eu sei disso porque vim dessa área. O que ele não pode é ter uma produção de teatro que custa dez vezes a produção de um filme. Isso não é verdadeiro! E se comprova pelas planilhas. Que existem propostas de R$ 10 milhões, até R$ 27 milhões, que foi a última que conseguimos uma justificativa para poder brecar. A gente precisa organizar a Lei Rouanet, tirar o peso dela, pactuar com os Estados para que não utilizem a Lei Rouanet, para que tenham recursos próprios. É isso que propõe o Sistema Nacional de Cultura, com um pacto federativo mais elaborado na área de cultura. Do jeito que está, há hoje grandes projetos do sistema S, do Sesi. Que poder de barganha tem um produtor independente para competir com o Sesi? Essas distorções nós precisamos corrigir. E para isso não precisa de uma lei, de uma secretaria própria de teatro. Nós precisamos que os instrumentos que existem atuem.
O ministério também fala da concentração de espetáculos no Sudeste...
Isso é um absurdo! 80,4% dos espetáculos de teatro financiados pela lei são do Sudeste, principalmente de São Paulo. Porque quem determina isso é a empresa, não é uma política pública.
Nesse artigo, os senhores afirmam que em "termos relativos, a atividade teatral diminuiu". Há dados concretos que comprovem essa tese?
É só ver o número de sessões por semana.
Mas, embora com menor duração, não houve aumento do número de salas, de espetáculos?
Relativamente, não. Você teve um aumento de população muito grande nas cidades. Portanto, um público potencial crescente, só que você tem espetáculos curtos. São vários. A gente tem ainda grandes atores, produtores, que sustentam uma temporada. Que gostam de fazer o teatro. Talvez nosso maior exemplo seja Paulo Autran, que faleceu há pouco tempo, e que esticava o espetáculo e dizia que "os deuses são contra tirar um espetáculo que está fazendo sucesso". Não é o concreto hoje. Concretamente, o produtor ganha mais na produção e na montagem do que na temporada.
Isso é regra ou exceção?
A exceção é manter uma temporada longa hoje em dia. Normalmente são espetáculos em São Paulo, Rio, mais duas, três capitais e o produtor está bem. Para ele, lançou nas principais capitais onde ele tem os seus clientes, o empresário que financiou está satisfeito. Ele consegue levantar R$ 2 milhões para fazer o espetáculo mas não está previsto como ele vai recuperar esses R$ 2 milhões. No caso da lei, ainda é mais grave. Os grandes produtores não reaplicarem o dinheiro é... imoral. É uma área com recursos tão exíguos e que está financiando outras áreas econômicas, porque o dinheiro não é reaplicado na área cultural nem teatral.
Essas propostas serão apresentadas como projeto de lei via Congresso Nacional?
Nós vamos discutir e apresentar via projeto de lei. A nossa idéia é ter diferentes tipologias que existem dentro da área teatral. Existe a tipologia que permite renúncia fiscal, que eu acho que não deve desaparecer de jeito nenhum, não é isso que a gente está propondo. Como a gente mexe com interesses muito pesados, começam a divulgar que a gente é contra a renúncia fiscal. Não é isso. Nem pretendemos destruir esse processo. A gente é contra a forma como está sendo utilizada agora. E o outro mecanismo é o financiamento direto, a juros baixos, a juro zero... Que era como o teatro era também. A gente tem que pensar o teatro como um tripé: o valor simbólico, direito de cidadania e economia. E para isso você tem que ter mecanismos de financiamento diferenciados. Não dá para eleger que o princípio que diz respeito a teatro como cidadania, por exemplo, se resolva na lei. Porque enquanto tem 80,4% dos recursos da região Sudeste, tem 0,4% na região Norte. Se você pensar o País como um todo, não tem como ficar quieto quanto a isso.
Então as regras que estão sendo pensadas não serão impostas via regulamentação do ministério da Cultura, serão apresentadas ao Congresso Nacional?
Claro, vai ser plenamente acordado e legalmente colocado.
O debate ainda vai longe?
Vai longe. A gente tem propostas e eu espero continuar argumentando com produtores. Porque a Funarte e o governo está a favor deles, não está contra. Ela quer facilitar, preservar e ampliar uma atividade, e eles são parceiros nessa atividade. Não tem nenhuma condenação ao diagnóstico que eles estão fazendo, nenhuma discordância. Existe discordância talvez das metodologias que a gente tem que usar para alcançar os nossos objetivos. Que eu espero que seja, me parece que para todos nós, o desenvolvimento da atividade teatral. E estamos juntos, vamos discutir e conversar até achar uma solução que seja comum. Não temos nada contrário aos produtores teatrais, muito longe disso. Estamos querendo unir esforços para construir uma solução definitiva. O que a gente acredita é que ampliar o sistema de renúncia fiscal não vai resolver, vai continuar agravando a situação que a gente está.