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março 17, 2008
Um universo estranhamente familiar, por Suzana Velasco, O Globo
Um universo estranhamente familiar
Matéria de Suzana Velasco, originalmente publicada nO Globo, no dia 13 de março de 2008
O gabinete barroco dispõe esqueletos de pássaros enjaulados, insetos catalogados, seções de um atlas de anatomia e um relógio cuco. Os esqueletos são reais, mas têm rabos ou bicos de resina, e dançam em caixas de música, como bailarinas. Os insetos são desenhados como num catálogo de ciências, mas suas características são inviáveis. No atlas, estão à mostra os órgãos internos de mitos como o Curupira, da Amazônia, e a sereia Ondina, da Bahia. O mundo é da fantasia, porém cientificamente estudado.
Na instalação na galeria Laura Marsiaj, o esqueleto do cuco aparece de 15 em 15 minutos, o dobro da velocidade normal. A obra, "Memento mori" (em latim, "lembre-se de que morrerá"), dá nome à exposição. Walmor Corrêa lida de forma poética e bem-humorada com a morte, o corpo dissecado, o esqueleto sem carne. Ele pesquisa cada um dos elementos de seus trabalhos, por meses e até anos a fio, unindo a precisão científica com o mundo imaginário.
- A morte é um tema aparentemente assustador. O objetivo é pensar que somos finitos, mas não como uma ameaça de morte frívola, e sim como um estímulo à vida - diz o artista.
Obra inspirada no trabalho dos viajantes europeus
Os painéis de seu atlas de anatomia - desejo de consumo do artista quando criança - são impressões das pinturas da série "Unheimlich", que estão na mostra "Os trópicos", no Centro Cultural Banco do Brasil, com curadoria de Alfons Hug. Depois de dois meses na Amazônia, em 2003, Corrêa começou a imaginar como seria o interior do corpo de mitos do imaginário popular. Segundo a lenda, o protetor das florestas, Curupira, tem os calcanhares na frente dos pés, que aparecem na pintura de Corrêa junto aos detalhes de seus músculos e tendões, assim como o crânio com um olho só, imaginado pelo artista, órgãos e ossos.
- Na Amazônia, pessoas esclarecidas falavam com muita naturalidade sobre o Curupira, como se ele existisse de fato. Então me lembrei de uma carta do Padre Anchieta, de 1560, em que ele relatava sobre o Curupira. A História brasileira tem esse imaginário muito rico.
As pinturas de "Unheimlich" (nome de um texto de Freud; em alemão, algo como o "estranho familiar") são feitas em tinta acrílica aguada, secada com secador de cabelo. Assim como em toda a obra de Corrêa, a técnica e o fazer artesanal são essenciais. O jogo precisa da ilusão de realidade, já que a estrutura de cada mito é pensada como se ele pudesse existir de fato. A realidade científica também é necessária. O artista até consultou cardiologistas para elaborar o coração de uma sereia, que é mulher e peixe ao mesmo tempo.
Esse interesse pela biologia surgiu na escola em Florianópolis, onde Corrêa desenhava os animais e se tornou assistente do professor no laboratório. Mas ele nunca quis ser biólogo. Mudou-se para Porto Alegre, formou-se arquiteto, e foi estudar no Ateliê Livre da cidade, uma espécie de Escola de Artes Visuais do Rio. Em 1989, viajou para a Europa para estudar sobre os viajantes europeus:
- Toda a minha obra tem a vertente do olhar dos viajantes europeus em realção ao mundo novo. Sempre me causou estranhamento ver desenhos de animais impossíveis feitos por eles, os riscadores.
Com um trabalho muito próprio, Corrêa teve dificuldade em se inserir no mercado de artes. Em 2003, numa exposição em Porto Alegre, seu trabalho foi visto pelo curador Tadeu Chiarelli, que levou a mostra para São Paulo. Alfons Hug conheceu o artista lá e o convidou para a Bienal de São Paulo de 2004.
- Foi um processo muito longo e angustiante. A arte contemporânea em geral separa o pensamento do fazer, que são indissociáveis no meu trabalho.
Artista pintou o interior do Homem-Aranha e da Cheetah
A série "Unheimlich" foi exposta nos EUA, e lá Corrêa começou a pensar nos "mitos" americanos. De volta ao Brasil, estudou sobre aranhas no Museu Goeldi, em Belém, e criou o Homem-Aranha, com glândulas de seda, e, depois, a Cheetah, a inimiga da Mulher Maravilha. Os dois estão na sala menor da Laura Marsiaj, apropriadamente como um "apêndice" do atlas. Pela sala principal, espalham-se as caixas de música, compradas em antiquários e pela internet e transformadas. Só uma delas teve o som produzido, de um piar de pássaros. As outras mantêm as músicas originais.
- Um dia, vi uma caixa de música quebrada, com a máquina aparente, e achei essa estrutura mais bonita que a caixa. Então pensei no esqueleto como máquina do corpo - diz ele. - A idéia era criar, na galeria, um gabinete de curiosidades, que foi o embrião dos museus.